Por Djalma Andrade
INTRODUÇÃO
Dentro desse campo minado, no qual pretendemos entrar, somos sabedores
de que, nele, a garimpagem das ideias tem com propósito nos conduzir por uma
trilha que se abre em cima de questões que nos fazem direcionar nosso olhar
para o louco, a loucura e a prática médica, buscando significar a realidade de
algumas reformas nesse campo, bem como a reforma psiquiátrica e sanitária.
UM BREVE OLHAR SOBRE O LOUCO, A
LOUCURA E A PRÁTICA MÉDICA
A
priori, nada nos é tão imperioso quanto termos como ponto de partida a seguinte
afirmação: nem sempre a loucura foi sinônimo de doença, a antiguidade que o
diga. Se assim o era, tal afirmação nos coloca a par dos porquês, que
constituem o ponto crucial de nossa investigação: por que e a partir de que o
desatino se transforma numa questão mórbida? É no bojo dessa pergunta que nos
habilitamos a adentrar em nossa proposta de trabalho.
É de
nosso interesse apontar para uma direção que passa pelo crivo da relação
médico-paciente. É claro que aqui subjaz uma questão de caráter política, mas,
nesse momento, faz-se de maior importância salientar que há doenças e
modificação de doenças. E isso já nos faz deduzir algo sobre o poder
psiquiátrico, como também sobre a transformação do louco em doente, digno de um
espaço (hospital/manicômio), onde, quando deveria ser um lugar de conhecimento,
torna-se um lugar de provas.
O lugar
em que se produzirá a doença será o laboratório, o tubo de ensaio; mas, aí, a
doença não se efetua numa crise; reduz-se seu processo a um mecanismo, que se
pode ampliar; reduz-se a doença a um fenômeno verificável e controlável. Nesse
contexto, a prova se transforma em prova na estrutura técnica do laboratório e
na representação do médico.
Nessa
temática, o saber constitui os poderosos pilares, os quais dão sustentação à
prática psicanalítica, isso porque o que se busca é dizer a verdade da doença
pelo saber que se tem dela. No cerne do saber, o médico é aquele que pode
produzir a doença em sua verdade e submetê-la na realidade pelo poder que sua
vontade exerce sobre o próprio doente. Destarte, o sofrimento do louco e seu isolamento
se transformam em adoecimento e os hospitais e clínicas tornam-se lugares
possíveis desta manifestação. O olhar clínico tem nos prontuários suas fontes
de consulta, distantes dos registros vivos de uma história de vida da pessoa. E
é nesse emaranhado oceano, que envolve privilégio do conhecimento e negação da
autonomia do indivíduo, que o poder psiquiátrico se produz mais e mais.
Frente à
realidade, toda essa situação não fica a quem do destino, e logo desperta a
atenção de olhares críticos, o que contribui para a formação de grupos que se
movem em oposição à questão.
A
despsiquiatrização, que aparece logo depois de Charcot, é certamente o primeiro
e um desses movimentos que se rebela contra o modo pelo qual as coisas são
conduzidas; todavia, no que diz respeito a tal movimento, este surge mais para
maquiar, se assim posso dizer, do que para contribuir positivamente, a favor do
louco, portanto, do sofrimento que é peculiar.
Assim,
no que se refere à natureza da despsiquiatrização, não se trata tanto de anular
o poder do médico quanto de deslocá-lo em nome de um saber mais exato, de lhe
dar outro ponto de aplicação e novas medidas, mas a relação de poder, a grande
ferida da questão, permanece imune a qualquer observação, viva no cerne da
dinâmica hospitalar.
Contrapartida,
surge mais um movimento (a antipsiquiatria) este se distancia da
despsiquiatrização justamente por sua natureza que não poupa às criticas a
questão do poder médico. O que temos agora não passa pelo crivo da maquiagem:
esse jogo de uma relação de poder que dá lugar a um conhecimento, o qual funda
por sua vez os direitos desse poder,
caracteriza a psiquiatria clássica. É justamente esse círculo que a
antipsiquiatria procura romper: dando ao indivíduo a tarefa e o direito de
levar a cabo sua loucura, levá-la até o fim, numa experiência para a qual os
outros podem contribuir, mas nunca em nome de um poder que lhes seria conferido
por sua razão ou por sua normalidade; destacando as condutas, os sofrimentos,
os desejos do estudo médico que lhe havia sido conferido, emancipando-os de um
diagnóstico e de uma sintomatologia que não tinham simplesmente valor de
classificação, mas de decisão e de decreto.
Entender
que o louco, em outrora, tivera um lugar na sociedade, é no mínimo instigante. Instigante
porque a sociedade atual nos dá outro panorama, no qual não há espaço para o
louco; nesse novo cenário social, o destaque agora é da loucura, em outras
palavras, o insano não tem maior importância do que a sua insanidade.
Em tempos outros, o insano se punha entre os
deuses e os homens, era o mensageiro; de certo modo, o privilegiado... não
possuidor da loucura, mas do dom. Dom que o transportava ao mundo dos deuses,
mundo da lua... era o lunático. Nessa esfera, louco e loucura era uma só coisa.
Ambos se confundiam no exercício diário de suas atividades. Portanto, o louco
sempre existiu, todavia o doente é coisa recente.
A
partir da revolução industrial, propriamente dito, o louco é separado de sua
loucura e, por conseguinte, do convívio social, é aqui que ele se torna o
doente. Nesse sistema, não há espaço para o “mensageiro”. Novo ritmo se impõe,
e a produtividade dita o rumo do louco e da loucura, agora separados. No novo
regime, onde se despontam olhares para a produção e consumismo, ambos regados
pelo capitalismo, o louco não é o melhor exemplo: nada produz, é a verdadeira
imagem do “vagabundo” disfarçado. Com isso, nada mais justo do que tirar essa
gente do convívio social. É aqui que o louco é separado de sua loucura:
enclausura o insano e liberta a sua insanidade, a Ciência e as indústrias
farmacêuticas têm singular interesse nela. A partir de então, a Ciência muito
se esforçou para avançar nessa área, mas os resultados são tão limitados quanto
ao olhar que lançamos ao arco-íris: vemos que o arco-íres é composto por várias
cores diferentes, mas não sabemos dizer, exatamente, onde cada uma começa e
termina.
Eis
o principal desafio que a loucura impõe à Ciência: onde ela começa, onde ela
termina? Como o próprio Foucault já assinalava: “não é a psicologia que explica
a loucura, mas esta que explica a psicologia”.
Em
meio á usura científica, a loucura se transforma em doença mental e como
patologia será teorizada e vivida política, social e culturalmente. O
internamento passa, aos poucos, um valor terapêutico como consequência do
reajustamento de gestos sociais, políticos e morais que desde mais de um século
condenaram a loucura e o desatino.
As
significações essenciais da loucura passam a se modificar com a Psicologia que
está em vias de surgir. O conteúdo do louco clássico é retomado via
conhecimento psicológico, baseado nas formas menos refletidas e mais imediatas
da moralidade. A relação médico-doente tem, em Freud, plena aceitação com o
surgimento da Psicanálise. Na direção dos médicos, se encaminham as estruturas
de internamento organizadas por Pinel e Tuke. A alienação torna-se desalienante
porque, no médico, ela se torna sujeito. O médico, enquanto figura alienante
torna-se a chave da Psicanálise. “A psicanálise pode desfazer algumas das
formas da loucura; mesmo assim, ela permanece estranha ao trabalho soberano do
desatinado. Ela não pode nem libertar-se nem transcrever e, com razão ainda
maior, nem explicar o que o que há de essencial nesse trabalho”(FOUCAULT,
1997).
Com
maior “liberdade”, o louco se confronta com sua própria verdade. A loucura
passará a falar a língua do “ser” humano, no conteúdo daquilo que ele é e no
esquecimento desse conteúdo, pois a loucura não se esgota na verdade do louco,
mas no seu enigma humano.
É
nesse emaranhado horizonte de perspectivas inseguras que lançamos o nosso olhar
para o destino da clínica, do manicômio. Aqui, o pensamento de Michel Foucault
rejeita as ideias de teorias totalizantes. Sua preocupação é com análise
arqueológica das formas de conhecimento e dos discursos, que operam
historicamente nas instituições. Em sua obra O Nascimento da Clínica, destaca a forma como a Medicina moderna
trouxe um novo recorte e com domínio se volta para o espaço do corpo
individual. Surgindo daí um novo discurso, a Epistemologia da idade clássica
caiu por terra e fez emergir novos signos, palavras, termos e jogos discursivos
entre o falso e o verdadeiro.
A
clínica professa, não produz conhecimento; é classificatória, já que o sintoma
é o signo da doença. A Medicina dos sintomas abre lugar à Medicina dos órgãos.
Um olhar vertical do médico observa a forma patológica da existência, seus
tecidos íntimos lesionados explicam toda uma sintomatologia.
O
sofrimento do louco e seu isolamento se transformam em adoecimento e os
hospitais e clínicas tornam-se lugares possíveis desta manifestação. O olhar
clínico tem nos prontuários suas fontes de consulta, distantes dos registros
vivos de uma história de vida da pessoa.
A
relação médico-paciente tornou-se, na maioria dos casos, um olhar sem escuta,
investigação quase muda, que não dialógica, sem anamnese. O paciente é objeto e
instrumento das ciências médicas. Medo, tristeza, isolamento por fatores
incapacitantes que geram sofrimento deveriam servir como base de um processo relacional
mais humanitário. Parece que não há vida nestes instantes, nenhum poder
criativo que faça acontecer um modo mais original de ver, perceber, trocar
ideias, que é o que, de fato, nos reconstitui existencialmente. Parece haver
uma anestesia nas percepções!
Atendendo
aos princípios de uma reforma psiquiátrica, a especialista em Filosofia
Clínica, Idalina Krause, dá-nos a sua contribuição: “faz-se necessário uma nova
Epistemologia, uma prática terapêutica diferente, menos medicamentos, mais
conversa, menos exames de alta tecnologia, mais olhares atentos sobre a
corporeidade, menos internação, mais acompanhamento, menos isolamentos, um
pouco mais de liberdade, menos sofrimento, mais atenção e cuidados mínimos.
Caso contrário, a clínica cairá provavelmente no esvaziamento, no descaso.
Morrerá dos seus próprios venenos”; (Rev. Filosofia, ciência & vida. nº 45,
p. 16). Uma tragédia anunciada, se assim possamos concluir.
Sem
catastrofismo, o destino é inconstante, mas influenciado pelas ações que afetam
os rumos da existência, num exercício apaixonado e criativo. Os grandes
infortúnios, os fados, se bem aproveitados, podem trazer ganhos inesperados.
Interrogar e diversificar os pensares, esse é o grande mistério que alegra e
refrigera a alma do médico e do louco que cada um de nós traz em suas entranhas
na descontinuidade da vida. Quando a
clínica descobrir que a loucura tem início no humano e que no mesmo se finda,
dará, pois, o seu primeiro passo qualitativo; deixará, então, de produzir o
nada revestido de insignificância.
REFORMA PSIQUIÁTRICA E SANITÁRIA
Dentro
de tudo aquilo que se apresenta como singular, não exclui, de modo algum,
caracteres similares ou complementares. Aqui, podemos fazer esse paralelo entre
a reforma Psiquiátrica e a Sanitária, as quais, de certo modo, não advêm de uma
voluntariedade, mas de um “grito”, que denota uma luta, uma necessidade de se
amenizar, por mínimo que seja, o desespero desenhado nas faces germinadoras de
um expressivo sofrimento, que traduzia a necessidade de uma atenção mais
cuidadosa, um olhar que pudesse enxergar além de questões sociais, culturas e
raciais.
Na
década de 1950 ainda não existia no Brasil uma estrutura sanitária permanente e
descentralizada (Brasil, 1992). Segundo Mendes (1995), a saúde pública era
caracterizada pelo modelo do “sanitarismo-campanhista”, que teve na polícia
sanitária e nas campanhas de saúde seus principais meios de efetivação,
dirigindo-se, prioritariamente, ao combate às doenças de massa – pestilenciais
(caracterizadas por epidemias de tifo, varíola, febre amarela etc). Esse modelo
foi marcado pelo saneamento dos espaços urbanos e de circulação de mercadorias,
pelo estilo repressivo das decisões e pela divisão entre saúde pública
(direcionada às ações coletivas) e atenção médica (direcionada aos indivíduos trabalhadores
isoladamente) (Merhy & Queiroz, 1993; Mendes, 1995; Merhy, 1997). No
entanto, esse modelo torna-se cada vez mais ineficaz na resolução dos problemas
de saúde da população brasileira, tendo em vista que propiciava uma baixa
cobertura assistencial, direcionada a problemas e estratos populacionais muito
específicos. Além disso, por ser uma política centralizadora, não dava conta
das diferenças culturais, sociais e econômicas envolvidas no processo de
saúde-doença em cada região do país (Brasil, 1992). (Disponível em: http://www.pucminas.br/imagedb/documento).
É em meio a esse cenário que se discute a
possibilidade de uma reforma psiquiátrica e sanitária, ambas distintas em si,
porém similares em suas bases, dito de forma diferente: complementares: “Conforme a lei 8.080, o SUS propõe a
criação de redes de serviços e ações regionalizadas e hierarquizadas, seguindo
princípios como universalidade, equidade e integralidade. A reforma
psiquiátrica brasileira, por sua vez, vem defendendo a extinção dos hospitais
psiquiátricos e sua substituição por redes de atenção em saúde mental.”
Segundo
Paim (2009), “Com a Constituição da República de 1988, a saúde passou a ser
reconhecida como um direito social, ou seja, inerente à condição de cidadão,
cabendo ao poder público a obrigação de garanti-lo: A saúde é direito de todos e dever do Estado (Art. 196). Essa
conquista política e social pode ser atribuída a diversas lutas e esforços
empreendidos pelo movimento de Reforma Sanitária, entre 1976 e 1988” (Paim,
2009, p. 43).
Ainda,
segunda o mesmo autor, “o SUS seria organizado a partir de três orientações
fundamentais ou diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada
esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades
preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da
comunidade” (ibidem, p. 49).
No que
concerne à Reforma Psiquiátrica, “Amarante (1995) situa a
emergência do processo de reforma psiquiátrica brasileira no final da década de
1970, com a constituição do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM).
Esse período foi marcado por uma série de denúncias contra a chamada “indústria
da loucura”, as violências asilares, as péssimas condições de trabalho dentro
das instituições psiquiátricas”(Disponível em: http://www.pucminas.br/imagedb/documento)
Em outro momento, o mesmo autor traz considerações
de caráter importante para o nosso trabalho, que enfatiza, no âmbito da saúde mental,
A
necessidade de constituição de uma rede extra-hospitalar, também chamada rede
complementar ao hospital psiquiátrico, composta por serviços intermediários
(anteriores à internação), dispostos de maneira hierarquizada e regionalizada,
seguindo princípios advindos do movimento de reforma sanitária. Ocorre um
incentivo ainda para a multiprofissionalidade, sendo que autores como
Dimenstein (1998) situam esse contexto como um dos pontos de entrada da
psicologia na saúde pública (ibidem).
É-nos
sabido o quanto ambas as Reformas ganharam e continuam a ganhar expressividade
positiva no âmbito da Saúde, de um modo geral. Todavia, não escapa de nosso saber
que a luta é constante. Aqui, nasce o incentivo e o desejo por fazer valer
aquilo que é o direito de todos. É claro que muito ainda se tem a realizar, a
olhar e, com certeza, a aprimorar, como por exemplo, os cuidados ao doente
mental, partindo do princípio de que manicômio não cura, manicômio tortura. Eis
a “logomarca” dos inúmeros movimentos sociais que se levantam em defesa do
doente mental. Movimento tal como a “Parada do Orgulho Louco”, ocorrida no dia
21.05.11, em Salvador, é uma representação viva de tal logomarca. O lema
Manicômio não cura, Manicômio tortura é expressivo e resume, por si, os
objetivos mais sutis do movimento em pauta, o qual expressa em seu lema aquilo
que lhe é mais crucial, mais original: a atenção à crise e os serviços de
atenção psicossocial. Relacionando tal
ponto com a perspectiva de Amarante, podemos entender que ele encontra sentido
digno de nota:
A atenção à crise
representa um dos aspectos mais difíceis e estratégicos. No modelo clássico de
psiquiatria, entende-se a crise como uma situação de grave disfunção que ocorre
exclusivamente em decorrência da doença. Como conseqüência desta concepção, a
resposta pode ser agarra a pessoa em crise a qualquer custo; amarrá-la;
injetar-lhe fortes medicamentos intravenosos de ação no sistema nervoso central
a fim de dopá-la, aplicar-lhe eletroconvulsoterapia (ECT) ou eletrochoque, como
é mais conhecido pelo domínio popular (2007, p. 81).
Conforme
o mencionado acima, é nesse emaranhado oceano que o lema da Parada do Orgulho
Louco encontra terreno fértil, ou seja, encontra brecha para dizer que tem algo
nessa relação desajustado. Desajuste este também apontado no debate sobre a
Luta Manicomial (18.05.11), no qual, sobre tudo, podemos vivenciar a realização
do sonho de Foucault: ver o louco dialogar com a sociedade de igual para igual,
fora dos muros, fora dos hospitais. E isso foi possível constatar, quer por
meio da música, quer por meio da arte, do contato em geral... Lá esteve o louco
dialogando com os presentes, com personalidades como o próprio Jacobina, que em
seu discurso introduziu toda a riqueza que estávamos para vivenciar: primeiro
na Parada do Orgulho Louco e depois no debate sobre atuação da Psicologia em
espaços da saúde (04.06.11), sendo este último de singular importância para que
pudéssemos entender que, “no contexto da saúde mental e atenção psicossocial, a
crise é entendida como uma resultado de uma série de fatores que envolvem
terceiros, sejam estes familiares, vizinhos, amigos ou mesmo desconhecidos”
(Amarante, 2007, p. 81).
Ainda,
sobre o debate do dia quatro, fica em evidência que a entrada da Psicologia na
Saúde dá continuidade ao pensamento faucaultiana, que atribui não somente à
clínica o tratamento do insano, mas principalmente ao contato desse com o meio
social, onde todos podem ser responsáveis por tal tratamento. E isso, de todo
modo, nos remete a questões sérias. Antes de tudo, o que está em pauta aqui é a
questão do preconceito. De fato, responsabilizar-se por tal processo, não
significa unicamente observar determinadas exigências, quando, na verdade, o
essencial mesmo é a modificação de nossos olhares, a maneira pela qual
enxergamos o louco e concebemos a loucura. Talvez, não somente Michael Foucault,
mas também os próprios eventos aqui discutidos estejam sinalizando que o
preconceito em si constitui o principal empecilho à vida do desatinado, como
também ao seu tratamento. Segundo a consideração de Amarante,
Por é necessário
que existam serviços de atenção psicossocial que possibilitem o acolhimento das
pessoas em crise, e que todas as pessoas envolvidas possam ser ouvidas,
expressando suas dificuldades, temores e expectativas. É importante que sejam
estabelecidos vínculos afetivos e profissionais com estas pessoas, que elas se
sintam realmente ouvidas e cuidadas, que sintam que os profissionais que as
estão escutando estão efetivamente voltados para seus problemas, dispostos e
compromissados a ajudá-las. Em atenção Psicossocial se usa a expressão
‘responsabilizar-se’ pelas pessoas que estão sendo cuidadas. A psiquiatria se
refere à relação médico-paciente, mas na verdade o que ela estabelece é uma
relação médico-doença. Na saúde mental e atenção psicossocial, o que se
pretende é uma rede de relação entre sujeitos, sujeitos que escutam e cuidam –
médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais,
dentre muito outros atores que são evidenciados neste processo social complexo
– com sujeitos que vivenciam as problemáticas – os usuários e familiares e
outros atores sociais (ibidem, p. 83).
Posto
isso, é claro que é inevitável não nos depararmos com afirmações que nos fazem
pensar a nossa timidez frente à questão. Isso nos faz entender que no Brasil
deveria ser assim, isso é, conforme a concepção do Amarante, acima apontada.
Além disso, no que diz respeito ao serviço de atenção psicossocial, o autor aponta
para a necessidade de se fazer valer o que está na lei:
No Brasil, as
portarias ministeriais 189/91 e 224/92 instituíram várias modalidades, dentre
as quais os hospitais-dia, as oficinas terapêuticas e os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), que foram reestruturados pelas portarias n.336/2 e 189/2
estabelecendo várias modalidade de CAPS. Os CAPS funcionam, pelo menos, durante
os cinco dias úteis da semana (de segunda a sexta-feira). O horário e
funcionamento nos fins de semana dependem do tipo de centro: CAPS I –
municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes – funcionam das 8h às
18h, de segunda a sexta-feira. CAPS II – municípios com população entre 70.000
e 200.000 habitantes – funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode
ter um terceiro período, funcionando até 21 horas. CAPS III – municípios com
população acima de 200.000 habitantes – funcionam 24 horas, diariamente, também
nos feriados e fins de semana. CAPSi – atendimento de crianças e adolescentes –
municípios com a população superior a 200.000 habitantes –funcionam das 8h às
18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até 21
horas. CAPSad – atendimento de dependência química (álcool e drogas) municípios
com população superior a 100.000 habitantes – funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode
ter um terceiro período, funcionando até 21 horas (ibidem, pp. 83/4).
Sabemos
que muitos são os desafios encontrados no vigor de tal proposta. A precariedade
na estrutura física é só mais uma dentre muitas outras faltas, que podem ser
traduzidas na carência de profissionais, material para atividade terapêutica,
medicamento, leitos dignos para os usuários, um ambiente climatizado, digno se
estar e receber também aos familiares do usuário. Tudo é real, e faz parte
desse cenário que passa pelo crivo do tratamento da crise. Em Salvador, a
realidade não é de modo algum diferente, as dificuldades são muitas, e isso
reflete na maneira pela qual a Saúde é priorizada, um descaso que se
autodenucia constantemente, na prática do dia-a-dia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O
caminho trilhado até aqui nos conduz ás produções e efeitos advindos de uma
cultura, do meio social. Nesse aspecto, a capacidade de se produzir doente é
expressiva. Se nem sempre a loucura esteve associada à doença, há de se deduzir
que temos algo nessa esfera responsável por essa junção. Negar ao insano o
convívio social é, de todo modo, negar-lhe o direito de reabilitação. Essa
postura só confirma que ser sano ou insano, diz respeito a uma questão social,
como já previa o próprio Foucault. Parece que a rotulação constitui o cerne da
questão: a loucura, antes de ser uma doença, é uma identidade, o sujeito a
porta e sua identificação depende disso.
Os movimentos que se opõem a tal proceder são muitos, isso é o bastante
para que possamos entender que há algo ai para ser repensado e reconstruído. A
pesar dos lentos passos, as conquistas são expressivas, e algumas Reformas no
âmbito da saúde vislumbram horizontes. Reformas tais como as taradas em nosso
trabalho, são de caráter importante, de benefício incalculável à sociedade. Mas
o mais importante nesse momento é que movimentos e debates continuem
solidificando o necessário aos cuidados do louco, o melhor a pensar e a ser
pensado. Somente iniciativas como estas poderão apontar novos horizontes e
vivenciar o louco desassociado de uma doença, dialogando com a sociedade. A
exemplo do debate sobre Luta Antimanicomial (18.05.11).
REFERÊNCIAS
___ FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998
___L´Ordre du discours,
Lençon inaugurale ao Collège de France prononcèe le 2 décembre 1970.
___ O nascimento da Clínica. Rio de Janeiro.
Ed. Forense Universitária, 1998.
___ AMARANTE, Paulo. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio
de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2007.
___PAIM, Jairnilson.
Rio de Janeiro. Ed. Fiocruz, 2009.
__FOUCAULT, Michel. O poder Psiquiátrico. São Paulo, Ed.
Martins Fonte, 2006
__REV. Filosofia,
Ciência & Vida, n. 45
___ PLATÃO. Diálogos.
Rio de Janeiro. Ediouro, 1986
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