Por Djalma Andrade
Se você achou estranho
o título desse texto que a partir de então começa a ganhar corpo, é porque
significa dizer que realmente somos estranhos, e isso é tudo o que não
gostaríamos de ser, estranhos. Ser expulso do conforto científico das palavras
é uma deselegância violenta: o vulgar nos dedura sem cerimônia.
Sou tentado a sair desse corpo vulgar, ele é
falível por ser assim. Preciso construir um paraíso onde eu e você, caro leitor,
juntos, ultrapassemos as reais possibilidades desse corpo esburacado.
Esburacado pela sua própria natureza violenta de ser.
O termo paraíso é
airoso e, em sua própria elegância de existir, sugere fantasia... eis a palavra
chave! Ficou confortável? Diria que tão confortável quanto o famoso mito do
“Jardim do Éden”, em um bom e elegante inglês: “Eden's Garden”. Eu gosto de trabalhar com o Jardim do Éden porque
ele não é uma utopia, ele existe e compõe a realidade psíquica do bebê. Sob os
cuidados da mãe, quem não diria que o bebê está em um paraíso? Já estivemos lá!
Paraíso este que se
sustenta justamente em sua natureza de inexistência de trabalho; onde as
necessidades são satisfeitas de forma mágica. O mundo do bebê é um mundo
mágico. Mágico não no sentido literal, mas mágico no sentido de realidade
mesmo: é o bebê que chora e peito cheio de leite vem, saciando seus
desconfortos e desejos a partir de um simples “abracadabra”. Não nos esqueçamos
de que, quando o Homem é expulso do Jardim do Éden, a primeira ressalva que lhe
é feita é de que, a partir de então, ele se sustentará de seu próprio trabalho;
ou seja, a têta cheia de leite não estará mais a sua disposição quando ele
chorar. E nos momentos de dores, somos atropelados pelo jargão das palavras:
“eu quero a minha mãe!” Mas o que se busca mesmo é o Jardim do Éden, perdido
para sempre, a têta!
Ser expulso do Éden
implica em tomar consciência do próprio corpo, corpo falível que contradiz o
mágico e, portanto, a onipotência real do mundo do bebê. Na lógica do Éden,
pode-se comer todos os frutos, desde quando estejam dentro dos muros da
fantasia, eis a questão pela qual tais
frutos aparecem na literatura bíblica sem nome, são apenas frutos. O que não se
nomeia fica no plano do imaginário, imaterial; ao contrário do fruto proibido,
que aparece com nome: a “maçã”, o material que, ao ser “comido”, abre os
olhos do Homem diante de sua própria condição física, é quando se da conta da
nudez. Há um corpo, e comer significa cagar!
Fiz esse percurso
justamente para entrar no problema da ANALIDADE, que reflete o dualismo da
condição humana: o seu eu e o seu corpo. A analidade e seus problemas surgem na
infância. O mais estranho e humilhante de tudo é a descoberta de que o seu
corpo tem, localizado na extremidade traseira inferior e fora do alcance dos
olhos, um buraco do qual saem cheiros fétidos e, ainda mais uma substância
fétida – muitíssimo desagradável para todos os demais e até mesmo para a
criança.
Por mais que a criança
tente realizar os maiores voos da sua fantasia, ela deverá sempre voltar ao
corpo. A princípio, a criança se diverte com o seu ânus e suas fezes, e
alegremente enfia o dedo no orifício, cheirando-o, lambuzando as paredes com
fezes, brincando de tocar objetos com o ânus, e coisa assim. Esta é uma forma
universal de brincar que realiza o trabalho sério de todo o brincar: reflete a
descoberta e o exercício de funções naturais do corpo.
Com a brincadeira anal,
a criança já se vai tornando um filósofo da condição humana. Como todos os
filósofos, porém, ainda está presa a essa condição, e sua principal tarefa na
vida passa a ser negar aquilo que o ânus representa: o fato de que, na verdade,
ela, a criança, nada mais é do que um corpo, no que diz respeito à natureza.
Os valores da natureza
são valores físicos (maçã) os valores humanos são valores mentais (frutos), e
embora estes alcem os voos mais elevados, são construídos sobre excremento,
impossível sem ele, sempre trazido de volta para ele. É como disse Montaigner,
“no mais alto trono do mundo o homem senta-se sobre o traseiro”.
O ânus e seu
incompreensível e repulsivo produto representam não apenas determinismo e
sujeição física, mas também o destino de tudo o que é físico: deterioração e
morte. E por mais que você se ache lindo e maravilhoso, não se esqueça de
combinar toda essa sua beleza divinal e narcísica com um cu que caga. É demais!
A natureza zomba de nós a todo instante!
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