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terça-feira, 8 de setembro de 2015

O COMPLEXO DE NARCISO NAS ÁGUAS DO FACEBOOK



Por Djalma Andrade

Estamos entrando em um campo que nos inscreve no paradoxo dos afetos pessoais e coletivos. Nessa investigação da imagem dos afetos nas águas do Facebook, a canção do rei Roberto Carlos, “Eu apenas quero” (1974), cai como luva nas mãos.

A música em pauta é marcada pelas suas inúmeras repetições do “Eu quero” (24x). A questão está no Eu precedido de desejo.  “Eu quero apenas cantar o meu canto, eu só não quero cantar sozinho”. No rol dessa necessidade narcísica, “eu quero ter um milhão de amigos (admiradores), e bem mais forte poder cantar”.

Com a chegada do Facebook, esse problema foi solucionado. O Eu prevalece, mas o “quero” deu lugar ao “posso”. Realidade e desejo se confundem em um mesmo espaço imaginário. Por meio de um acordo prévio, todos estão embebidos por um mesmo canto: eu acredito no que você posta, e você acredita no que eu posto - contrato psicológico.

Em um de seus trabalhos de pesquisa sobre o assunto, apresentado no XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Fortaleza, CE – 3 a 7/9/2012, Cláudio Cardoso de Paiva, atiça, de modo significativo, as labaredas dessa discussão:

O filme A Rede Social (David Fincher, 2011) consiste numa biografia de Mark Zuckerberg, inventor do Facebook, portanto exibe o “Sujeito na tela” e cria a oportunidade para compreendermos o espírito de Narciso na era da internet. A narrativa mostra os afetos característicos da personalidade narcisista, recalque, auto-estima baixa, ressentimento, egoísmo, crueldade, e parece ser uma história de superação: Zuckerberg driblou os rivais, ficou bilionário e fez uma revolução na comunicação. O slogan do filme é sintomático de um “estado psicossocial” típico da chamada “Geração Digital”, ligada nos games, celulares e computadores: “Você não consegue fazer 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos”. A narrativa é atravessada pelos afetos egóicos, agressivos, extremamente competitivos e predatórios: a ira, a inveja e o sentimento de vingança imperam nas falas e gestos, atualizando o diagnóstico clínico das “desordens do caráter narcisista”.

Vale pontuar que o fenômeno do narcisismo foi analisado nas obras de Freud e Jung, e estudos mais recentes, Eros e Civilização (MARCUSE, 1955), A cultura do narcisismo (LASCH, 1983) e Máquina de Narciso (SODRÉ, 1984); este último resgata o conceito para decifrar os desequilíbrios na equação “indivíduo, televisão e poder no Brasil”. Pelo outro lado da tela, na perspectiva do público, o fenômeno do narcisismo se mostra num misto de idolatria e vontade de aparecer. A figura simbólica de Narciso condensa uma eticidade reveladora dos estilos de conduta do ser humano com relação a “si-próprio” e aos indivíduos à sua volta. Como as outras mitologias antigas, Narciso traz consigo uma moral da estória: alerta para o risco de morte causado pela destemperança e fragilidade do ser diante do pathos arrebatador. E adverte, particularmente, com relação ao exagero no fascínio pela própria imagem, sem deixar de aludir à “virtude narcísica” que consistiria na arte de manter o equilíbrio entre a auto-estima, o cuidado de si, o orgulho próprio, e as vaidades e egoísmos extremados.

Dentro de um esquema pensado, o Facebook pergunta diretamente ao visitante: “No que você está pensando?”, remetendo-nos à máxima filosófica de Descartes: “Penso, logo existo”. Convém notar, o Facebook se dirige ao ego e refaz a pergunta milenar: “Quem é você?”. Assimilando a contribuição estético-filosófica de Martino (2010), percebemos que a matéria dos sites de conversação são as narrativas (falas escritas e escritas oralizadas). Ali, os atores produzem uma escrita de si, forjando uma identidade que criaram para si, na qual acreditam piamente. A perspicácia do pesquisador consiste em reformular assim a pergunta do oráculo Facebook: “Quem você pensa que é?”. A subversão é genial, pois resgata a crítica do ethos autoritário brasileiro, como o faz Da Matta, na obra Carnavais, malandros e heróis (1983), problematizando a caricata frase dos coronéis: “Você sabe com quem está falando?”


 Nas águas do Facebook, dificilmente vamos saber com quem estamos falando. Igualmente, dificilmente saberemos separar desejo de realidade, principalmente quando se trata de águas que refletem o poder de se ter um milhão de amigos. 

SAÚDE MENTAL E A REFORMA PSIQUIÁTRICA

Por Djalma Andrade 


INTRODUÇÃO
Dentro desse campo minado, no qual pretendemos entrar, somos sabedores de que, nele, a garimpagem das ideias tem com propósito nos conduzir por uma trilha que se abre em cima de questões que nos fazem direcionar nosso olhar para o louco, a loucura e a prática médica, buscando significar a realidade de algumas reformas nesse campo, bem como a reforma psiquiátrica e sanitária.  


UM BREVE OLHAR SOBRE O LOUCO, A LOUCURA E A PRÁTICA MÉDICA
A priori, nada nos é tão imperioso quanto termos como ponto de partida a seguinte afirmação: nem sempre a loucura foi sinônimo de doença, a antiguidade que o diga. Se assim o era, tal afirmação nos coloca a par dos porquês, que constituem o ponto crucial de nossa investigação: por que e a partir de que o desatino se transforma numa questão mórbida? É no bojo dessa pergunta que nos habilitamos a adentrar em nossa proposta de trabalho.    

É de nosso interesse apontar para uma direção que passa pelo crivo da relação médico-paciente. É claro que aqui subjaz uma questão de caráter política, mas, nesse momento, faz-se de maior importância salientar que há doenças e modificação de doenças. E isso já nos faz deduzir algo sobre o poder psiquiátrico, como também sobre a transformação do louco em doente, digno de um espaço (hospital/manicômio), onde, quando deveria ser um lugar de conhecimento, torna-se um lugar de provas.

O lugar em que se produzirá a doença será o laboratório, o tubo de ensaio; mas, aí, a doença não se efetua numa crise; reduz-se seu processo a um mecanismo, que se pode ampliar; reduz-se a doença a um fenômeno verificável e controlável. Nesse contexto, a prova se transforma em prova na estrutura técnica do laboratório e na representação do médico. 

Nessa temática, o saber constitui os poderosos pilares, os quais dão sustentação à prática psicanalítica, isso porque o que se busca é dizer a verdade da doença pelo saber que se tem dela. No cerne do saber, o médico é aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la na realidade pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente. Destarte, o sofrimento do louco e seu isolamento se transformam em adoecimento e os hospitais e clínicas tornam-se lugares possíveis desta manifestação. O olhar clínico tem nos prontuários suas fontes de consulta, distantes dos registros vivos de uma história de vida da pessoa. E é nesse emaranhado oceano, que envolve privilégio do conhecimento e negação da autonomia do indivíduo, que o poder psiquiátrico se produz mais e mais.

Frente à realidade, toda essa situação não fica a quem do destino, e logo desperta a atenção de olhares críticos, o que contribui para a formação de grupos que se movem em oposição à questão.
A despsiquiatrização, que aparece logo depois de Charcot, é certamente o primeiro e um desses movimentos que se rebela contra o modo pelo qual as coisas são conduzidas; todavia, no que diz respeito a tal movimento, este surge mais para maquiar, se assim posso dizer, do que para contribuir positivamente, a favor do louco, portanto, do sofrimento que é peculiar.

Assim, no que se refere à natureza da despsiquiatrização, não se trata tanto de anular o poder do médico quanto de deslocá-lo em nome de um saber mais exato, de lhe dar outro ponto de aplicação e novas medidas, mas a relação de poder, a grande ferida da questão, permanece imune a qualquer observação, viva no cerne da dinâmica hospitalar.

Contrapartida, surge mais um movimento (a antipsiquiatria) este se distancia da despsiquiatrização justamente por sua natureza que não poupa às criticas a questão do poder médico. O que temos agora não passa pelo crivo da maquiagem: esse jogo de uma relação de poder que dá lugar a um conhecimento, o qual funda por sua vez os direitos desse  poder, caracteriza a psiquiatria clássica. É justamente esse círculo que a antipsiquiatria procura romper: dando ao indivíduo a tarefa e o direito de levar a cabo sua loucura, levá-la até o fim, numa experiência para a qual os outros podem contribuir, mas nunca em nome de um poder que lhes seria conferido por sua razão ou por sua normalidade; destacando as condutas, os sofrimentos, os desejos do estudo médico que lhe havia sido conferido, emancipando-os de um diagnóstico e de uma sintomatologia que não tinham simplesmente valor de classificação, mas de decisão e de decreto.

Entender que o louco, em outrora, tivera um lugar na sociedade, é no mínimo instigante. Instigante porque a sociedade atual nos dá outro panorama, no qual não há espaço para o louco; nesse novo cenário social, o destaque agora é da loucura, em outras palavras, o insano não tem maior importância do que a sua insanidade.

  Em tempos outros, o insano se punha entre os deuses e os homens, era o mensageiro; de certo modo, o privilegiado... não possuidor da loucura, mas do dom. Dom que o transportava ao mundo dos deuses, mundo da lua... era o lunático. Nessa esfera, louco e loucura era uma só coisa. Ambos se confundiam no exercício diário de suas atividades. Portanto, o louco sempre existiu, todavia o doente é coisa recente.

A partir da revolução industrial, propriamente dito, o louco é separado de sua loucura e, por conseguinte, do convívio social, é aqui que ele se torna o doente. Nesse sistema, não há espaço para o “mensageiro”. Novo ritmo se impõe, e a produtividade dita o rumo do louco e da loucura, agora separados. No novo regime, onde se despontam olhares para a produção e consumismo, ambos regados pelo capitalismo, o louco não é o melhor exemplo: nada produz, é a verdadeira imagem do “vagabundo” disfarçado. Com isso, nada mais justo do que tirar essa gente do convívio social. É aqui que o louco é separado de sua loucura: enclausura o insano e liberta a sua insanidade, a Ciência e as indústrias farmacêuticas têm singular interesse nela. A partir de então, a Ciência muito se esforçou para avançar nessa área, mas os resultados são tão limitados quanto ao olhar que lançamos ao arco-íris: vemos que o arco-íres é composto por várias cores diferentes, mas não sabemos dizer, exatamente, onde cada uma começa e termina. 

Eis o principal desafio que a loucura impõe à Ciência: onde ela começa, onde ela termina? Como o próprio Foucault já assinalava: “não é a psicologia que explica a loucura, mas esta que explica a psicologia”. 

Em meio á usura científica, a loucura se transforma em doença mental e como patologia será teorizada e vivida política, social e culturalmente. O internamento passa, aos poucos, um valor terapêutico como consequência do reajustamento de gestos sociais, políticos e morais que desde mais de um século condenaram a loucura e o desatino.

As significações essenciais da loucura passam a se modificar com a Psicologia que está em vias de surgir. O conteúdo do louco clássico é retomado via conhecimento psicológico, baseado nas formas menos refletidas e mais imediatas da moralidade. A relação médico-doente tem, em Freud, plena aceitação com o surgimento da Psicanálise. Na direção dos médicos, se encaminham as estruturas de internamento organizadas por Pinel e Tuke. A alienação torna-se desalienante porque, no médico, ela se torna sujeito. O médico, enquanto figura alienante torna-se a chave da Psicanálise. “A psicanálise pode desfazer algumas das formas da loucura; mesmo assim, ela permanece estranha ao trabalho soberano do desatinado. Ela não pode nem libertar-se nem transcrever e, com razão ainda maior, nem explicar o que o que há de essencial nesse trabalho”(FOUCAULT, 1997).

Com maior “liberdade”, o louco se confronta com sua própria verdade. A loucura passará a falar a língua do “ser” humano, no conteúdo daquilo que ele é e no esquecimento desse conteúdo, pois a loucura não se esgota na verdade do louco, mas no seu enigma humano.

É nesse emaranhado horizonte de perspectivas inseguras que lançamos o nosso olhar para o destino da clínica, do manicômio. Aqui, o pensamento de Michel Foucault rejeita as ideias de teorias totalizantes. Sua preocupação é com análise arqueológica das formas de conhecimento e dos discursos, que operam historicamente nas instituições. Em sua obra O Nascimento da Clínica, destaca a forma como a Medicina moderna trouxe um novo recorte e com domínio se volta para o espaço do corpo individual. Surgindo daí um novo discurso, a Epistemologia da idade clássica caiu por terra e fez emergir novos signos, palavras, termos e jogos discursivos entre o falso e o verdadeiro.

A clínica professa, não produz conhecimento; é classificatória, já que o sintoma é o signo da doença. A Medicina dos sintomas abre lugar à Medicina dos órgãos. Um olhar vertical do médico observa a forma patológica da existência, seus tecidos íntimos lesionados explicam toda uma sintomatologia.

O sofrimento do louco e seu isolamento se transformam em adoecimento e os hospitais e clínicas tornam-se lugares possíveis desta manifestação. O olhar clínico tem nos prontuários suas fontes de consulta, distantes dos registros vivos de uma história de vida da pessoa.

A relação médico-paciente tornou-se, na maioria dos casos, um olhar sem escuta, investigação quase muda, que não dialógica, sem anamnese. O paciente é objeto e instrumento das ciências médicas. Medo, tristeza, isolamento por fatores incapacitantes que geram sofrimento deveriam servir como base de um processo relacional mais humanitário. Parece que não há vida nestes instantes, nenhum poder criativo que faça acontecer um modo mais original de ver, perceber, trocar ideias, que é o que, de fato, nos reconstitui existencialmente. Parece haver uma anestesia nas percepções!

Atendendo aos princípios de uma reforma psiquiátrica, a especialista em Filosofia Clínica, Idalina Krause, dá-nos a sua contribuição: “faz-se necessário uma nova Epistemologia, uma prática terapêutica diferente, menos medicamentos, mais conversa, menos exames de alta tecnologia, mais olhares atentos sobre a corporeidade, menos internação, mais acompanhamento, menos isolamentos, um pouco mais de liberdade, menos sofrimento, mais atenção e cuidados mínimos. Caso contrário, a clínica cairá provavelmente no esvaziamento, no descaso. Morrerá dos seus próprios venenos”; (Rev. Filosofia, ciência & vida. nº 45, p. 16). Uma tragédia anunciada, se assim possamos concluir.  

Sem catastrofismo, o destino é inconstante, mas influenciado pelas ações que afetam os rumos da existência, num exercício apaixonado e criativo. Os grandes infortúnios, os fados, se bem aproveitados, podem trazer ganhos inesperados. Interrogar e diversificar os pensares, esse é o grande mistério que alegra e refrigera a alma do médico e do louco que cada um de nós traz em suas entranhas na descontinuidade da vida.  Quando a clínica descobrir que a loucura tem início no humano e que no mesmo se finda, dará, pois, o seu primeiro passo qualitativo; deixará, então, de produzir o nada revestido de insignificância.


REFORMA PSIQUIÁTRICA E SANITÁRIA
Dentro de tudo aquilo que se apresenta como singular, não exclui, de modo algum, caracteres similares ou complementares. Aqui, podemos fazer esse paralelo entre a reforma Psiquiátrica e a Sanitária, as quais, de certo modo, não advêm de uma voluntariedade, mas de um “grito”, que denota uma luta, uma necessidade de se amenizar, por mínimo que seja, o desespero desenhado nas faces germinadoras de um expressivo sofrimento, que traduzia a necessidade de uma atenção mais cuidadosa, um olhar que pudesse enxergar além de questões sociais, culturas e raciais.

Na década de 1950 ainda não existia no Brasil uma estrutura sanitária permanente e descentralizada (Brasil, 1992). Segundo Mendes (1995), a saúde pública era caracterizada pelo modelo do “sanitarismo-campanhista”, que teve na polícia sanitária e nas campanhas de saúde seus principais meios de efetivação, dirigindo-se, prioritariamente, ao combate às doenças de massa – pestilenciais (caracterizadas por epidemias de tifo, varíola, febre amarela etc). Esse modelo foi marcado pelo saneamento dos espaços urbanos e de circulação de mercadorias, pelo estilo repressivo das decisões e pela divisão entre saúde pública (direcionada às ações coletivas) e atenção médica (direcionada aos indivíduos trabalhadores isoladamente) (Merhy & Queiroz, 1993; Mendes, 1995; Merhy, 1997). No entanto, esse modelo torna-se cada vez mais ineficaz na resolução dos problemas de saúde da população brasileira, tendo em vista que propiciava uma baixa cobertura assistencial, direcionada a problemas e estratos populacionais muito específicos. Além disso, por ser uma política centralizadora, não dava conta das diferenças culturais, sociais e econômicas envolvidas no processo de saúde-doença em cada região do país (Brasil, 1992). (Disponível em: http://www.pucminas.br/imagedb/documento).

É em meio a esse cenário que se discute a possibilidade de uma reforma psiquiátrica e sanitária, ambas distintas em si, porém similares em suas bases, dito de forma diferente: complementares: “Conforme a lei 8.080, o SUS propõe a criação de redes de serviços e ações regionalizadas e hierarquizadas, seguindo princípios como universalidade, equidade e integralidade. A reforma psiquiátrica brasileira, por sua vez, vem defendendo a extinção dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por redes de atenção em saúde mental.” 

Segundo Paim (2009), “Com a Constituição da República de 1988, a saúde passou a ser reconhecida como um direito social, ou seja, inerente à condição de cidadão, cabendo ao poder público a obrigação de garanti-lo: A saúde é direito de todos e dever do Estado (Art. 196). Essa conquista política e social pode ser atribuída a diversas lutas e esforços empreendidos pelo movimento de Reforma Sanitária, entre 1976 e 1988” (Paim, 2009, p. 43).
            Ainda, segunda o mesmo autor, “o SUS seria organizado a partir de três orientações fundamentais ou diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade” (ibidem, p. 49).   

No que concerne à Reforma Psiquiátrica, “Amarante (1995) situa a emergência do processo de reforma psiquiátrica brasileira no final da década de 1970, com a constituição do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). Esse período foi marcado por uma série de denúncias contra a chamada “indústria da loucura”, as violências asilares, as péssimas condições de trabalho dentro das instituições psiquiátricas”(Disponível em: http://www.pucminas.br/imagedb/documento)

Em outro momento, o mesmo autor traz considerações de caráter importante para o nosso trabalho, que enfatiza, no âmbito da saúde mental,
A necessidade de constituição de uma rede extra-hospitalar, também chamada rede complementar ao hospital psiquiátrico, composta por serviços intermediários (anteriores à internação), dispostos de maneira hierarquizada e regionalizada, seguindo princípios advindos do movimento de reforma sanitária. Ocorre um incentivo ainda para a multiprofissionalidade, sendo que autores como Dimenstein (1998) situam esse contexto como um dos pontos de entrada da psicologia na saúde pública (ibidem).

É-nos sabido o quanto ambas as Reformas ganharam e continuam a ganhar expressividade positiva no âmbito da Saúde, de um modo geral. Todavia, não escapa de nosso saber que a luta é constante. Aqui, nasce o incentivo e o desejo por fazer valer aquilo que é o direito de todos. É claro que muito ainda se tem a realizar, a olhar e, com certeza, a aprimorar, como por exemplo, os cuidados ao doente mental, partindo do princípio de que manicômio não cura, manicômio tortura. Eis a “logomarca” dos inúmeros movimentos sociais que se levantam em defesa do doente mental. Movimento tal como a “Parada do Orgulho Louco”, ocorrida no dia 21.05.11, em Salvador, é uma representação viva de tal logomarca. O lema Manicômio não cura, Manicômio tortura é expressivo e resume, por si, os objetivos mais sutis do movimento em pauta, o qual expressa em seu lema aquilo que lhe é mais crucial, mais original: a atenção à crise e os serviços de atenção psicossocial.   Relacionando tal ponto com a perspectiva de Amarante, podemos entender que ele encontra sentido digno de nota:
A atenção à crise representa um dos aspectos mais difíceis e estratégicos. No modelo clássico de psiquiatria, entende-se a crise como uma situação de grave disfunção que ocorre exclusivamente em decorrência da doença. Como conseqüência desta concepção, a resposta pode ser agarra a pessoa em crise a qualquer custo; amarrá-la; injetar-lhe fortes medicamentos intravenosos de ação no sistema nervoso central a fim de dopá-la, aplicar-lhe eletroconvulsoterapia (ECT) ou eletrochoque, como é mais conhecido pelo domínio popular (2007, p. 81).

Conforme o mencionado acima, é nesse emaranhado oceano que o lema da Parada do Orgulho Louco encontra terreno fértil, ou seja, encontra brecha para dizer que tem algo nessa relação desajustado. Desajuste este também apontado no debate sobre a Luta Manicomial (18.05.11), no qual, sobre tudo, podemos vivenciar a realização do sonho de Foucault: ver o louco dialogar com a sociedade de igual para igual, fora dos muros, fora dos hospitais. E isso foi possível constatar, quer por meio da música, quer por meio da arte, do contato em geral... Lá esteve o louco dialogando com os presentes, com personalidades como o próprio Jacobina, que em seu discurso introduziu toda a riqueza que estávamos para vivenciar: primeiro na Parada do Orgulho Louco e depois no debate sobre atuação da Psicologia em espaços da saúde (04.06.11), sendo este último de singular importância para que pudéssemos entender que, “no contexto da saúde mental e atenção psicossocial, a crise é entendida como uma resultado de uma série de fatores que envolvem terceiros, sejam estes familiares, vizinhos, amigos ou mesmo desconhecidos” (Amarante, 2007, p. 81).

   Ainda, sobre o debate do dia quatro, fica em evidência que a entrada da Psicologia na Saúde dá continuidade ao pensamento faucaultiana, que atribui não somente à clínica o tratamento do insano, mas principalmente ao contato desse com o meio social, onde todos podem ser responsáveis por tal tratamento. E isso, de todo modo, nos remete a questões sérias. Antes de tudo, o que está em pauta aqui é a questão do preconceito. De fato, responsabilizar-se por tal processo, não significa unicamente observar determinadas exigências, quando, na verdade, o essencial mesmo é a modificação de nossos olhares, a maneira pela qual enxergamos o louco e concebemos a loucura. Talvez, não somente Michael Foucault, mas também os próprios eventos aqui discutidos estejam sinalizando que o preconceito em si constitui o principal empecilho à vida do desatinado, como também ao seu tratamento. Segundo a consideração de Amarante,

Por é necessário que existam serviços de atenção psicossocial que possibilitem o acolhimento das pessoas em crise, e que todas as pessoas envolvidas possam ser ouvidas, expressando suas dificuldades, temores e expectativas. É importante que sejam estabelecidos vínculos afetivos e profissionais com estas pessoas, que elas se sintam realmente ouvidas e cuidadas, que sintam que os profissionais que as estão escutando estão efetivamente voltados para seus problemas, dispostos e compromissados a ajudá-las. Em atenção Psicossocial se usa a expressão ‘responsabilizar-se’ pelas pessoas que estão sendo cuidadas. A psiquiatria se refere à relação médico-paciente, mas na verdade o que ela estabelece é uma relação médico-doença. Na saúde mental e atenção psicossocial, o que se pretende é uma rede de relação entre sujeitos, sujeitos que escutam e cuidam – médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, dentre muito outros atores que são evidenciados neste processo social complexo – com sujeitos que vivenciam as problemáticas – os usuários e familiares e outros atores sociais (ibidem, p. 83).    

Posto isso, é claro que é inevitável não nos depararmos com afirmações que nos fazem pensar a nossa timidez frente à questão. Isso nos faz entender que no Brasil deveria ser assim, isso é, conforme a concepção do Amarante, acima apontada. Além disso, no que diz respeito ao serviço de atenção psicossocial, o autor aponta para a necessidade de se fazer valer o que está na lei:

No Brasil, as portarias ministeriais 189/91 e 224/92 instituíram várias modalidades, dentre as quais os hospitais-dia, as oficinas terapêuticas e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que foram reestruturados pelas portarias n.336/2 e 189/2 estabelecendo várias modalidade de CAPS. Os CAPS funcionam, pelo menos, durante os cinco dias úteis da semana (de segunda a sexta-feira). O horário e funcionamento nos fins de semana dependem do tipo de centro: CAPS I – municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes – funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. CAPS II – municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes – funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas. CAPS III – municípios com população acima de 200.000 habitantes – funcionam 24 horas, diariamente, também nos feriados e fins de semana. CAPSi – atendimento de crianças e adolescentes – municípios com a população superior a 200.000 habitantes –funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas. CAPSad – atendimento de dependência química (álcool e drogas) municípios com população superior a 100.000 habitantes – funcionam  das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas (ibidem, pp. 83/4).

Sabemos que muitos são os desafios encontrados no vigor de tal proposta. A precariedade na estrutura física é só mais uma dentre muitas outras faltas, que podem ser traduzidas na carência de profissionais, material para atividade terapêutica, medicamento, leitos dignos para os usuários, um ambiente climatizado, digno se estar e receber também aos familiares do usuário. Tudo é real, e faz parte desse cenário que passa pelo crivo do tratamento da crise. Em Salvador, a realidade não é de modo algum diferente, as dificuldades são muitas, e isso reflete na maneira pela qual a Saúde é priorizada, um descaso que se autodenucia constantemente, na prática do dia-a-dia.    

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caminho trilhado até aqui nos conduz ás produções e efeitos advindos de uma cultura, do meio social. Nesse aspecto, a capacidade de se produzir doente é expressiva. Se nem sempre a loucura esteve associada à doença, há de se deduzir que temos algo nessa esfera responsável por essa junção. Negar ao insano o convívio social é, de todo modo, negar-lhe o direito de reabilitação. Essa postura só confirma que ser sano ou insano, diz respeito a uma questão social, como já previa o próprio Foucault. Parece que a rotulação constitui o cerne da questão: a loucura, antes de ser uma doença, é uma identidade, o sujeito a porta e sua identificação depende disso.  Os movimentos que se opõem a tal proceder são muitos, isso é o bastante para que possamos entender que há algo ai para ser repensado e reconstruído. A pesar dos lentos passos, as conquistas são expressivas, e algumas Reformas no âmbito da saúde vislumbram horizontes. Reformas tais como as taradas em nosso trabalho, são de caráter importante, de benefício incalculável à sociedade. Mas o mais importante nesse momento é que movimentos e debates continuem solidificando o necessário aos cuidados do louco, o melhor a pensar e a ser pensado. Somente iniciativas como estas poderão apontar novos horizontes e vivenciar o louco desassociado de uma doença, dialogando com a sociedade. A exemplo do debate sobre Luta Antimanicomial (18.05.11).   


REFERÊNCIAS


___ FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998

___L´Ordre du discours, Lençon inaugurale ao Collège de France prononcèe le 2 décembre 1970.

___ O nascimento da Clínica. Rio de Janeiro. Ed. Forense  Universitária, 1998.

___ AMARANTE, Paulo. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2007.

___PAIM, Jairnilson. Rio de Janeiro. Ed. Fiocruz, 2009.

__FOUCAULT, Michel. O poder Psiquiátrico. São Paulo, Ed. Martins Fonte, 2006

__REV. Filosofia, Ciência & Vida, n. 45


___ PLATÃO. Diálogos. Rio de Janeiro. Ediouro, 1986

DOENÇAS PSICOSSOMÁTICAS: O TEATRO DO CORPO

 Por Djalma Andrade 

Se não quer adoecer, fale de suas emoções. Para os menos desavisados, essa frase do Dr. Dráuzio Varella parece vaga. O bom do vago é que ele sempre cabe alguma coisa, é o caso das doenças. As doenças que, do nada, invadem o nosso corpo e, mesmo com as mais variadas facetas de sintomas possíveis, são vagas de explicações laboratoriais e, portanto, de todo e qualquer tubo de ensaio. O vago aqui cabe algo, a psicossomatose. Estou falando da influência direta das cargas afetivas nas doenças e adoecer.

A priori, para falarmos da atuação do psicológico como causa de doenças orgânicas, é fundamental que lancemos toda a nossa ironia sobro o mito que tende a separar o psiquismo do orgânico. “Situar as coisas em termos de causas psíquicas versus causas orgânicas é uma característica do pensamento médico, verdadeira armadilha epistemológica para o psicólogo, que não pode incorrer em tal erro, pois o psiquismo também é orgânico e vice-versa” (MORETTO, 1983). 

Para o médico psiquiatra, psicanalista e psicólogo Alfredo Simonetti, a ideia de um aspecto psicológico atuar como causa de uma doença orgânica é o próprio campo da psicossomática, que tem demonstrado cabalmente a influência da mente sobre o corpo, o que implica as emoções, os conflitos psíquicos e o estresse como responsáveis diretos pela etiopatogenia das doenças. 

Nas afecções psicossomáticas, o dano físico é bem real, e sua discrição, durante uma análise, não revela à primeira vista qualquer conflito neurótico ou psicótico. O “sentido” é de ordem pré-simbólica e provoca um curto-circuito na representação da palavra. Vamos tentar aqui fazer uma comparação com a maneira pela qual os psicóticos tratam a linguagem. O pensamento do psicótico pode ser concebido como uma “inflação delirante” do emprego da palavra com a finalidade de preencher os espaços de vazio aterrorizante (MONTGRAIN, 1987), enquanto os processos de pensamento dos somatizantes procuram esvaziar a palavra de sua significação afetiva. Assim, nos estados psicossomáticos, é o corpo que se comporta de maneira “delirante”; ele “hiperfunciona” ou inibe funções somáticas normais e o faz de modo insensato no plano fisiológico. O corpo enlouquece.  
Estamos falando das doenças em seu âmbito natural e fisiológico, e aquelas acidentais, oriundas de acidentes, automobilísticos, por exemplo? Seriam elas também de natureza psicossomáticas? Pesquisas mostram que grande parte dos acidentes acontece com pessoas que estão passando por fortes processos de ansiedade ou conflitos psíquicos de alguma natureza. Destruir um carro é, antes de tudo, destruir o próprio corpo, visto ser o primeiro extensão do segundo.  Em atendimento a um (a) paciente, cujo caso é extremamente psicossomático, observei que seu discurso girava em torno da destruição de sua casa, e isso se punha para o (a) a paciente como dor insuportável... não foi tarefa difícil perceber que, inconscientemente,  tal paciente se referia a outro tipo de casa, a “casa corpo”, corpo que agora delirava nas oscilações de fortes e insuportáveis dores.

Mas, enfim, por que e quando somatizamos? Somatizamos porque o ser humano é, por natureza, um ser frágil e desprotegido, cuja sobrevivência sempre dependeu do desenvolvimento de mecanismo de defesa, seja ele psicológico ou não. Desde o mais remoto humano, aprendemos a desenvolver mecanismos de defesa em prol da sobrevivência. No âmbito empírico, coloca-se aí o fogo, armamentos, estratégias de caça...  Na esfera psicológica, não é diferente, e isso ganha corpo no próprio mundo e dinâmica humano ainda bebê. Aí, a mãe representa, para o bebê, o principal mecanismo de defesa. As pesquisas atuais (BRAZELTON, 1982; STERN, 1985; DEBRAY 1988) põem em evidência a importância das primeiras trocas mãe-lactente, bem como o fato de que cada bebê constantemente envia à sua mãe sinais que indicam suas preferências e suas aversões. Se a mãe estiver livre de entraves internos, saberá “ouvir” as comunicações iniciais de seu lactente. Mas pode ocorrer que uma mãe, presa de sofrimento e angústia internos, não seja capaz de observar e interpretar os sorrisos, os gestos e as queixas de seu filhinho e que, ao contrário, o violente ao impor seus próprios desejos e necessidades, o que cria no bebê um sentimento permanente de frustração e de fúria impotente. Esse tipo de experiência pode impeli-lo a construir com os recursos de que dispõe maneiras (mecanismos) radicais de se proteger de crises afetivas e do esgotamento que disso pode resultar.

Segundo o psicanalista Joice Mcdougall, muito frequentemente essas pessoas adquirem um autonomia precoce que os faz parecer os “lactentes sábios”. Como não conseguem confiar em ninguém, obrigam-se a cuidar de sua própria segurança física e psíquica, como se ninguém fosse verdadeiramente confiável. Dito de outra maneira, muito cedo eles compreenderam que deveriam ser pais para si próprios. E um grande e comum mecanismo de defesa aqui é a insônia, como sintoma psicossomático. As pessoas que sofrem de insônia têm que velar constantemente por seu self-lactente, para se assegurarem de que estão fora de perigo. É o modo de que dispõem para atenuar uma angústia de separação que poderia abater-se sobre elas subitamente.

Somatizamos porque precisamos de mecanismos de defesa à sobrevivência, quer seja fisicamente, que seja psicologicamente; e psicossomatizamos quando toda e qualquer carga afetiva transborda, ultrapassa toda e qualquer possibilidade de defesa. Daí, é imperioso concluir que toda e qualquer doença é uma tentativa de cura de si... é psicossomática.   

REFERÊNCIA
_____MCDOUGALL, Joyce. Teatro do Corpo: o psicossoma em psicanálise. 3ªed. São Paulo: ed. Martins Fontes, 2013.
_____SIMONETTI, Alfredo. Manual de psicologia Hospitalar: o mapa da doença. 7ªed., São Paulo: casa do psicólogo, 2013.

_____ANGERAMI, Valdemar Augusto (ORG.) Psicossomática e suas interfaces: o processo silencioso do adoecimento. São Paulo: ed. Cengage Learning, 2012. 

O SOFRIMENTO PSÍQUICO DIANTE DO DIAGNÓSTICO DE CÂNCER

                                                                                                                                 Por Djalma Andrade

Atualmente, em parte de meu trabalho, tem sido a minha rotina avaliar e acompanhar paciente com diagnóstico de câncer. É claro que as perguntas são muitas, e as incertezas superam as certezas.  Dentre as minhas inquietações, uma pergunta sempre em latência: psicologicamente, por que determinado paciente reage diferente de outros diante do diagnóstico de neoplasia, por que o sofrimento psíquico é mais visível em uns ao passo que em outros nem sofrimento parece haver?  Ao longo do tempo e das avaliações busqueis elementos para tentar responder a tal pergunta.

Aos poucos fui entendendo que a resposta está em uma via de mão dupla: fora e dentro do paciente. Quando digo fora, refiro-me aos estigmas que norteiam o diagnóstico “câncer”, que passa pelo crivo da cultura; dentro, estou sinalizando a personalidade do indivíduo. Depois desse achado, eis que surgiu mais uma pergunta: a personalidade pode interferir, a ponto de anular a dor psíquica de um paciente com câncer?

Depois de mais um tempo de estudo e observações, conclui que não. Entendi que a personalidade do paciente tem papel importante, mas não para anular o sofrimento psicológico, e sim para definir o modo pelo qual o indivíduo vai lidar com tal realidade de dor. E você pode perguntar: não seria demais generalizar? Bem, vamos lá... Se eu estivesse falando de uma questão tão somente a partir de fatores “internos” ao paciente, diria que sim. Acontece que estou olhando também para os fatores externos ao paciente com câncer, fatores estes que todos estão expostos, vulneráveis: o principal causador de alterações emocionais e, portanto, comportamentais, não diz respeito tão somente ao diagnóstico em si, mas principalmente aos estigmas que apontam e pesam para uma mesma e única direção: sentença de morte.

Diante de tal sentença, é comprovado, até mesmo pela nossa própria evolução genética, que todo e qualquer organismo, inconscientemente ou não, reage. No bojo de tal reação, torna-se inevitável, no âmbito psicológico, a vivência de sentimentos de medo, ansiedade, impotência, insegurança, tristeza, angústia, às vezes raiva, culpa, solidão, vazio, negação, estresse aumentado e/ou algo da natureza.  

Tais sentimentos se reverberam na vida psíquica do paciente com câncer de forma direta ou indireta.

 Quando diretamente, os sintomas são visíveis, e o "desespero" do paciente é patente; indiretamente, o paciente reage por meio de mecanismo de defesa, que vai depender da personalidade e meio cultural do indivíduo. São muitos comuns mecanismos de defesas tais como: intensificação da crença religiosa, positivismo, esperança aumentada, supervalorização da vida, alto astral elevado, motivação para dar e vender... Inicialmente, é assim que essas pessoas chegam para mim, e realmente contagiam o ambiente; mas na hora da pergunta mágica que costumo iniciar as sessões: “o que você traz”?, os mecanismos desabam, e a dor está lá, ancorada nos estigmas, em águas sentenciosas, a morte. O que não passa de um estigma socialmente construído, pois é comprovado, cientificamente, que mais de 60% dos casos de câncer, quando diagnosticado precocemente, é tratado e curado.  

A PSICOLOGIA DO CU E O JARDIM DO ÉDEN



                                                                                                                                  Por Djalma Andrade


Se você achou estranho o título desse texto que a partir de então começa a ganhar corpo, é porque significa dizer que realmente somos estranhos, e isso é tudo o que não gostaríamos de ser, estranhos. Ser expulso do conforto científico das palavras é uma deselegância violenta: o vulgar nos dedura sem cerimônia.

 Sou tentado a sair desse corpo vulgar, ele é falível por ser assim. Preciso construir um paraíso onde eu e você, caro leitor, juntos, ultrapassemos as reais possibilidades desse corpo esburacado. Esburacado pela sua própria natureza violenta de ser.

O termo paraíso é airoso e, em sua própria elegância de existir, sugere fantasia... eis a palavra chave! Ficou confortável? Diria que tão confortável quanto o famoso mito do “Jardim do Éden”, em um bom e elegante inglês: “Eden's Garden”. Eu gosto de trabalhar com o Jardim do Éden porque ele não é uma utopia, ele existe e compõe a realidade psíquica do bebê. Sob os cuidados da mãe, quem não diria que o bebê está em um paraíso? Já estivemos lá!

Paraíso este que se sustenta justamente em sua natureza de inexistência de trabalho; onde as necessidades são satisfeitas de forma mágica. O mundo do bebê é um mundo mágico. Mágico não no sentido literal, mas mágico no sentido de realidade mesmo: é o bebê que chora e peito cheio de leite vem, saciando seus desconfortos e desejos a partir de um simples “abracadabra”. Não nos esqueçamos de que, quando o Homem é expulso do Jardim do Éden, a primeira ressalva que lhe é feita é de que, a partir de então, ele se sustentará de seu próprio trabalho; ou seja, a têta cheia de leite não estará mais a sua disposição quando ele chorar. E nos momentos de dores, somos atropelados pelo jargão das palavras: “eu quero a minha mãe!” Mas o que se busca mesmo é o Jardim do Éden, perdido para sempre, a têta!

Ser expulso do Éden implica em tomar consciência do próprio corpo, corpo falível que contradiz o mágico e, portanto, a onipotência real do mundo do bebê. Na lógica do Éden, pode-se comer todos os frutos, desde quando estejam dentro dos muros da fantasia,  eis a questão pela qual tais frutos aparecem na literatura bíblica sem nome, são apenas frutos. O que não se nomeia fica no plano do imaginário, imaterial; ao contrário do fruto proibido, que aparece com nome: a “maçã”, o material que, ao ser “comido”,   abre os olhos do Homem diante de sua própria condição física, é quando se da conta da nudez. Há um corpo, e comer significa cagar!

Fiz esse percurso justamente para entrar no problema da ANALIDADE, que reflete o dualismo da condição humana: o seu eu e o seu corpo. A analidade e seus problemas surgem na infância. O mais estranho e humilhante de tudo é a descoberta de que o seu corpo tem, localizado na extremidade traseira inferior e fora do alcance dos olhos, um buraco do qual saem cheiros fétidos e, ainda mais uma substância fétida – muitíssimo desagradável para todos os demais e até mesmo para a criança.
Por mais que a criança tente realizar os maiores voos da sua fantasia, ela deverá sempre voltar ao corpo. A princípio, a criança se diverte com o seu ânus e suas fezes, e alegremente enfia o dedo no orifício, cheirando-o, lambuzando as paredes com fezes, brincando de tocar objetos com o ânus, e coisa assim. Esta é uma forma universal de brincar que realiza o trabalho sério de todo o brincar: reflete a descoberta e o exercício de funções naturais do corpo.

Com a brincadeira anal, a criança já se vai tornando um filósofo da condição humana. Como todos os filósofos, porém, ainda está presa a essa condição, e sua principal tarefa na vida passa a ser negar aquilo que o ânus representa: o fato de que, na verdade, ela, a criança, nada mais é do que um corpo, no que diz respeito à natureza.

Os valores da natureza são valores físicos (maçã) os valores humanos são valores mentais (frutos), e embora estes alcem os voos mais elevados, são construídos sobre excremento, impossível sem ele, sempre trazido de volta para ele. É como disse Montaigner, “no mais alto trono do mundo o homem senta-se sobre o traseiro”.


O ânus e seu incompreensível e repulsivo produto representam não apenas determinismo e sujeição física, mas também o destino de tudo o que é físico: deterioração e morte. E por mais que você se ache lindo e maravilhoso, não se esqueça de combinar toda essa sua beleza divinal e narcísica com um cu que caga. É demais! A natureza zomba de nós a todo instante!   

SEXUALIDADE INFANTIL: A FORMAÇÃO PSÍQUICA E CORPÓREA DO BEBÊ




                                                                                                                             Por Djalma Andrade 



RESUMO

Este trabalho tem por objetivo verificar em Freud a lógica da fase oral da libido como estrutura primeira da sexualidade. Investiga-se a importância de tal fase para o desenvolvimento afetivo-sexual do bebê. Farei isso a partir de uma leitura dos textos freudianos acerca do tema, que se divide em três momentos: no primeiro estágio o foco se volta à simbologia e primazia da oralidade na construção psíquica e corpórea do bebê; posteriormente a isto, a concentração girará em torno do seio materno como objeto de apoio do vínculo psicossexual na fase oral; e, por fim, ênfase à sexualidade nos primórdios da fase oral.  Qual é o sentido dessas proposições?

Palavras-chave: Freud, sexualidade, objeto, seio, bebê, mãe, fase oral.

ABSTRACT

This article has the goal to verify on Freud’s work the logic behind the oral phase of libido as the first structure of sexuality. The research is conducted in order to understand the importance of this phase to the affective-sexual development of the child. I will do it by reviewing the Freudian texts about the subject, that may be divided on three stages: the first on the focus is on the simbology  and the primacy of orality on the psychic and body construction of the baby; the second one, is centered on the mothern  breast as an object of support of the psychosexual bound on the oral phase; and, at last, the enfasis is on the sexuality on the begging  of the oral phase. What is the purpose of this propositions?

Key – words: Freud, sexuality, object, breast, baby, mother, oral phase.


INTRODUÇÃO
           
            Parece ser irrefutável a ideia de que o bebê, ao se alimentar no seio da mãe, representa a mais terna imagem da inocência, desprovido de saber, memória e sexualidade. No senso comum, não parece costumeiro imaginar que ele busque aí outra satisfação que não a de natureza biológica, proporcionada pela saciedade da fome.
Essa pureza sexual do bebê não parece ser propriedade exclusiva de nossa imaginação. Em algumas culturas religiosas, como por exemplo, no Cristianismo, tal natureza se torna modelo de salvação. Quem nunca leu ou ouviu a ilustre frase bíblica: “deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o reino dos Céus”?. E essa atribuição teológica da infância com o estado de pureza ganha sentido também em nossa cultura de várias maneiras, e uma delas consiste na tendência que tem o senso comum de fazer uso do termo “anjinho” para se referir a uma criança. O que há de saber no imaginário coletivo acerca de anjos e bebês que os associam numa – “quase” - naturalidade? Ao que tudo indica anjos e bebês não possuem sexualidade. A psicanalista Renata Mattos de Azevedo (2008, p. 215), ao se referir à natureza angelical, assim também o concebe.
Nesse mesmo diapasão, diz a tradição do cristianismo que o menino Jesus nasceu de uma virgem, dispensado a sexualidade da representação materno-filial. Eduardo Ponte Brandão (2010, p. 48), referindo-se à influência dos escolásticos aos ensinamentos cristãos, diz que tal corrente filosófica denomina a natureza do sexual de pecaminosa e, portanto, um entrave à relação do sujeito com Deus. Nesse aspecto, um trecho do evangelho de Mateus, fazendo menção à inocência do bebê, parece buscar resolver tal imparcialidade entre o sexualizado (indivíduo) e o não sexualizado (divino): “em verdade vos digo que se não vos fizerdes como uma criança, de modo algum entrareis no reino dos céus”.  Discutindo o valor e a natureza da criança ao longo da história, Elisabeth Badinter (1985, p. 56) afirma que tais palavras de Jesus indicam, antes de tudo, uma defesa à inocência e pureza desse pequeno ser: “não proclamou ele a sua inocência ao aconselhar aos adultos que se assemelhassem às crianças”? E a autora prossegue: “não lhes deu um lugar de honra ao seu lado, ao dizer: ‘deixai vir a mim as criancinhas”’?
Sobre essa concepção da natureza infantil, Freud também concorda que “faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual que ela está ausente na infância e só desperta no período da vida designado puberdade”. Em contrapartida, o autor adverte que “esse não é apenas um erro qualquer, e sim um equívoco de graves consequências, pois é o principal culpado de nossa ignorância de hoje sobre as condições básicas da vida sexual” (1905, p. 163). Sobre isso, Freud diz que a “... razão dessa estranha negligência pode ser buscada, em parte, nas considerações convencionais que os autores respeitam em consequência de sua própria criação e, em parte, num fenômeno psíquico que até agora escapou a qualquer explicação” (ibidem, p. 164). O autor se refere “à singular amnésia que, na maioria das pessoas (não em todas!), encobre os primeiros anos da infância até os seis ou oito anos de idade” (ibidem).
Posto isto, a proposta aqui é investigar o modo pelo qual Freud reflete sobre esses primeiros anos da infância “encobertos” para pensar a sexualidade infantil: qual o ponto de partida? Laplanche (2010, p. 184) é direto em sua leitura: a oralidade. Garcia-Roza (2009, p. 104) completa que “... nela o prazer ainda está ligado à ingestão de alimentos e à excitação da mucosa dos lábios e da cavidade bucal”. Assim, qual é a natureza da oralidade na teoria freudiana, e o que significa aí a gênese da sexualidade infantil? É o que proponho como questão de pesquisa a ser perseguida ao longo desse trabalho.

A SIMBOLOGIA E PRIMAZIA DA ORALIDADE NA CONSTRUÇÃO CORPÓREA E PSÍQUICA DO BEBÊ

Já estava havendo então, e eu ainda não sabia, os primeiros sinais em mim do desabamento de cavernas calcárias subterrâneas, que ruíam sob o peso de camadas arqueológicas estratificadas – e o peso do primeiro desabamento abaixava os cantos de minha boca, me deixava de braços caídos. O que me acontecia? Nunca saberei entender, mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de construir esse alguém que entenderá (Clarice Lispector).

No reino animal, o bebê humano é o único a nascer com dependência absoluta. Os cuidados dos pais, ou de quem dele cuida, são indispensáveis à sua sobrevivência. Atenções básicas tais como alimentação, higiene e segurança são de vitais importâncias para esse pequeno Ser. Conforme frisava Freud, desde o “Projeto” (1889, p. 370), sem esse Outro que cuida, o bebê humano não sobrevive.  A respeito desse processo delicado, reservado unicamente ao filhote humano, Erick Neumann escreve:

Uma das características fundamentais que diferencia o homem dos animais, até mesmo daqueles que se encontram mais próximo do homem na escala evolutiva, é o fato de o filhote humano, para empregar a terminologia de Portmann, precisa passar por uma fase embrionária intra-uterina, e também por uma outra, extra-uterina. Os filhotes dos mamíferos superiores nascem num estado de relativa maturidade; ou imediatamente, ou logo um pouco após o nascimento, já são pequenos adultos, que têm não apenas toda a aparência dos animais adultos, como também já se encontram aptos a levar a vida sem precisarem de qualquer ajuda. O embrião humano, para nascer num estado de amadurecimento equivalente, precisaria passar por um período de gestação de cerca de vinte a vinte e dois meses. Em outras palavras, o filhote humano, após os nove meses que passa no útero, requer ainda mais um ano para atingir o grau de maturidade que caracteriza a maioria dos mamíferos ao nascer. Desse modo, todo o primeiro ano da infância precisa ser considerado como fazendo parte da fase embrionária. Soma-se à fase embrionária, em que a criança se encontra psíquica e fisicamente integrada no corpo da mãe, uma segunda fase, pós-uterina, pós-natal, durante a qual a criança já fez sua entrada na sociedade humana e, com seu ego e com sua consciência, começam a desenvolver-se, vai incorporando a linguagem e os costumes de seu grupo (1980, p. 9).

Tal explanação de Neumann força uma pergunta: o que leva o bebê abandonar tão precocemente o útero da mãe? Seguindo a lógica da natureza, que se aplica aos demais animais, o correto não seria o filhote humano vir ao mundo com certa dose de preparo para enfrentar determinados perigos que se impõem à vida mundana?  É natural que se pense que o simples fato de o bebê humano possuir pais que dão conta do recado (o que não deixa de ser verdade, haja vista o sucesso evolutivo da espécie), pareceria ser o bastante para se dar a questão como encerrada. Todavia, segundo o documentário da BBC (2007) sobre o corpo humano em seu início de formação e no período de gestação, a resposta não se acha em tal concepção. Verifica-se que a explicação para o “abandono” humano é achada na própria estrutura do corpo humano.   
O documentário assinala que a gestação, desde seu processo inicial, é acompanhada pelas imperfeições do corpo humano: “... espermatozoides tão frágeis que quase todos são aniquilados, óvulos tão frágeis que sobrevivem apenas um dia”. Para a equipe médica da Universidade de Adelaide (Austrália), produtora do conhecimento que subsidia o documentário, ainda nos seis meses da gestação, o corpo da mãe já fora levado aos seus limites, e isso faz do parto a tarefa mais difícil com a qual o corpo tem que lidar. Mas a maior questão é: por que somos assim? Por que o nosso corpo é projetado para tornar cada estágio da gestação tão difícil e perigoso? Para o documentário, esse é o “x” da questão: “... o nosso corpo não foi projetado, ao contrário, ele evoluiu; nossas imperfeições são simples problemas herdados de nossos ancestrais”.
E o documentário segue explicando que, observado dentro do útero com ultrassom tridimensional, um bebê para nascer parece estar totalmente formado, mas sob um aspecto crucial: ele ainda não está pronto para o mundo, seu cérebro não está nem perto de estar totalmente formado. A equipe médica sustém que se ele tivesse que esperar por isso, teria que ficar no útero por mais 12 meses, mas há uma razão simples para que ele não fique lá por tanto tempo: para sair, o bebê precisa passar pelo meio da pelve; mais algum tempo no útero e sua a cabeça seria grande demais para passar.  A nossa pelve evoluiu até alcançar a sua dimensão máxima. Se fosse mais larga, andar seria impossível; então, se o bebê vem mesmo ao mundo, precisa fazer isso agora, esteja o cérebro pronto ou não. E isso caracteriza a saída precoce do útero da mãe, que insere o bebê em uma realidade de “abandono” – pós-uterina, conforme Freud e Neumann pontuam cada um à sua medida. E Freud (1910, p.178) ainda postula que, em tal circunstância, o nascimento é o primeiro de todos os perigos da vida do sujeito e, portanto, ficará “como protótipo de todos subsequentes que nos levam a sentir ansiedade, e a experiência do nascimento, provavelmente, nos legou a expressão de afeto que chamamos ansiedade”.
Despreparado para esse novo mundo, “... o corpo do bebê impõe necessidades que o mesmo não tem como responder” (FREUD, 1886. p. 370). Para o autor, “... essas necessidades exigem, por sua vez, uma ação específica para que sejam satisfeitas...” mas, “...o organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia,quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna” (ibidem). Para o psicanalista (ibidem), “essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais”. Freud completa que,

Quando a pessoa que executa o trabalho da ação específica no mundo externo para o desamparado, este último fica em posição, por meio de dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno (ibidem).

E o autor conclui: “a totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que tem as consequências mais radicais no desenvolvimento das funções do indivíduo” (ibidem), e isso se dá, segundo Freud, porque três coisas ocorrem no sistema de memória:
(1) efetua-se uma descarga permanente e, assim, elimina-se a urgência que causa desprazer em ω; (2) produz-se no palliuma catexização de um (ou de vários) neurônio que corresponde à percepção do objeto; e (3) em outros neurônios do palliumchegam as informações sobre a descarga do movimento reflexo liberado que se segue à ação específica (ibidem).

Comentando sobre a questão em pauta, a psicanalista Julieta Jerusalinsky (2011) considera que, para Freud, tal
Satisfação só pode ser realizada por meio da assistência alheia de uma pessoa experiente que atribui ao choro desencadeado no bebê, pela sua urgência vital, uma intenção de comunicação. Assim, os estímulos endógenos são situados como os precursores das pulsões e, portanto, o modo como essa pessoa experiente sustenta o estabelecimento do círculo pulsional terá um papel decisivo nos primórdios da constituição do aparelho psíquico do bebê – não só por propiciar a experiência de satisfação, mas só por poder propiciá-la a partir de uma função de interpretação das ações do bebê (2011, p. 87 - 88).

Em os Três Ensaios sobre a Sexualidade (1905, p. 171), Freud sustenta que esse Outro experiente, responsável por tal interpretação é mãe; pois, em suas considerações essa primeira satisfação é obtida pelo alimento (leite materno), dado que é este que satisfaz o estado de necessidade orgânico caracterizado pela fome. Portanto, a existência do bebê é totalmente dependente da mãe, eis a realidade primeira do bebê, na fase pós-uterina.
Na concepção freudiana deste período de sua teoria, tal realidade primeva é nomeada de fase oral. Em outras palavras, o psicanalista chama a atenção para o fato de que o primeiro contato do sujeito com o mundo ocorre via boca, pois considera que a primeira e mais vital das atividades da criança é mamar no seio materno. A psicanalista Françoise Dolto lembra que, ao propor a fase oral, Freud está dizendo também que aí “a criança desloca o oral para todos os lugares e são precisamente as mãos que, como uma boca, consegue pegar, largar e falar” (1992, p. 18).
Para Neumann (ibidem, p. 27), ao enfatizar a fase oral, Freud reconhece nela a importância do tratado alimentar como uma porta de entrada. Entrada de quê? A psicanalista Zornig se antecipa à questão e diz que, para o pai da psicanálise, “ao se alimentar no seio materno, o bebê se nutre principalmente da voz da mãe” (2006, p. 4). O que isso significa?  
 Evaristo Eduardo de Miranda (2002, p. 219) dá a sua contribuição e afirma que “... a boca é de fundamental importância para o conjunto orgânico e psíquico do homem”. Neumann concorda e acrescenta: “... a boca tem implicações cósmicas, e mais tarde sociais, que ultrapassam muito o significado local, concreto e material de uma membrana mucosa erógena”. O autor ainda destaca que tal órgão na fase oral “... e em grande parte daí por diante também – é uma unidade psicológica” (ibidem).  Desse modo, busca-se compreender qual o significado disso para o desenvolvimento corpóreo e psíquico da criança.
Para início de conversa, pode-se entender que o “... oral não é apenas sugar e lamber, mas também balbuciar, falar e cantar” (NEUMANN, 1980, p. 27). No senso comum, talvez essa não seja a compreensão mais desejada, visto não ser de costume atribuir fala ao mundo do bebê. Em contrapartida, Freud (1905, p. 122) diz que não é bem assim, e que no mundo do bebê é provada por sons significantes constituintes de uma fala que é adquirida pelo vocabulário da língua materna que, por sua vez proporciona ao bebê um óbvio prazer de experimentá-lo brincando com ele. Segundo Gross, o bebê “... reúne as palavras, sem respeitar a condição de que elas façam sentido, a fim de obter delas um gratificante efeito de ritmo ou de rima” (apud FREUD, ibidem).
            Além dessa “fala primeva” e eficaz para as funções ordenadoras da memória do bebê, presente no seu mundo, a psicanalista Silvia M. Abu-Jamra Zornig (2006, p. 3) chama a atenção para outra questão de caráter significante que se faz presente também como linguagem no mundo desse pequeno sujeito: “o simbolismo do corpo”. A autora afirma que, quanto a isso, o pai da psicanálise não enxerga diferente, pois “... para Freud e para os psicanalistas em geral, o corpo, além de sua dimensão biológica, é um corpo simbólico. Simbólico no sentido de que a imagem que cada um tem de si é construída na relação com os adultos que ocupam a função de pais”. É caro dizer que isso parece se estender além do saber psicanalítico, pois na cultura cristã, por exemplo, esse simbolismo tem o mesmo valor, e aí o homem é criado à imagem e semelhança de Deus. Segundo Miranda (2002, p. 227), “existe um corpo de IHWH que determina o corpo do homem, o corpo do homem é informado por Ele, recebe a sua imagem”.
            Nesse sentido, pode-se dizer que a relação da mãe com o bebê faz parte desse ritual de informação. Seguindo essa lógica, Judith Butler nos diz que já no ato do nascimento, a declaração “É uma menina!” ou “É um menino!”, é mais do que uma descrição.   A autora afirma que isso “... pode ser compreendido como uma definição ou decisão sobre o corpo, uma asserção que desencadeia todo um processo de “fazer” desse um corpo feminino ou masculino” (apud Vera Pollo, 2008, p. 334-5). Pollo (ibidem) conclui que Butler toma emprestado da linguística o conceito de performatividade para afirmar que “a linguagem que se refere aos corpos ou ao sexo não faz apenas uma constatação ou descrição desses corpos, mas, no instante mesmo da nomeação, constrói, “faz” aquilo que nomeia, isto é, produz os corpos e os sujeitos” e

A mãe, por sua condição desejante em relação ao bebê, é quem primeiramente se vê arrastada a encarnar, a ‘ocupar realmente o lugar do Outro’, O Outro implica a estrutura da linguagem anterior e exterior ao sujeito, mas é preciso que um Outro encarnado a porte e a materialize, endereçando um desejo não anônimo ao bebê, para que este possa vir a se constituir comofalasser (parl’être) a partir dessa estrutura (JERUSALINSKY, 2011, p. 15).

             Nessa produção da imagem, os pais atribuem à criança características psíquicas e sentimentos muito além de suas reais possibilidades: “... ela parece com o pai, é teimosa como a mãe, é esperta”... Para Zornig (2006, p. 3) “... se estas atribuições são pertinentes ou não, pouco importa. O importante é que o bebê não é olhado como uma massa de carne de baixo peso”. Metaforicamente falando, o sopro que sai da boca de “Deus” confere ao homem possibilidades e potências muito além de um simples pedaço de barro. A psicanalista Françoise Dolto (1992, p. 12) esclarece que “não se trata de uma imagem no sentido corrente da palavra, “é uma imagem inconsciente e não-especular, ela é um substrato relacional da linguagem”. A autora afirma que,

Na verdade, essa expressão resulta de um jogo de palavras dividido em três partes. Veja e reflitamos a partir da nossa fala do dia-a-dia, constataremos que falamos a partir de um mínimo de identidades adquiridas por todos. Ora, essas identidades são, no caso, constituintes da palavra “imagem”: a primeira letra “I”, do termo “Identidade”; o “ma”, primeira sílaba da palavra “mamãe”, “minha mamãe”, [ma maman] e seguida do “me ama” [m’aime](homófone em francês ao adjetivo “mesmo” [même], que marca a identidade absoluta). Finalmente o “gem” [ge], última sílaba da palavra “imagem” [image], que significa terra, a base ou ainda o corpo, bem como o “eu” [jê], pronome pessoal da primeira pessoa do singular. Pronto, I-ma-gem, isto é, substrato relacional com o outro.  (ibidem, p. 10 - 11).

No bojo dessa formação da imagem corpórea e psíquica do bebê, Freud (1905, p. 210) concebe à mãe, conforme já se viu, lugar fundamental, e conclui que se ela “compreendesse melhor a suma importância das pulsões para a vida anímica como um todo, para todas as realizações éticas e psíquicas, ela se pouparia das auto-recriminações no que diz respeito aos cuidados primeiros com o bebê”.  Para o autor (ibidem), quando

A mãe ensina seu filho a amar, está apenas cumprindo a sua tarefa; afinal, ele deve transformar-se num ser humano capaz, dotado de uma necessidade sexual, e possa realizar em sua vida tudo aquilo a que os seres humanos são impelidos pela pulsão.

É como se as primeiras experiências obtidas nos cuidados maternos servissem também de base e vínculo às satisfações e o modo pelo qual se busca vivenciá-las. Mas isso é assunto para a nossa próxima tópica, que se desenvolverá a partir das implicações e da natureza do seio à fase oral.


O SEIO MATERNO COMO OBJETO DE APOIO DO VÍNCULO PSICO-SEXUAL NA FASE ORAL
Teus seios... quando os sinto, quando os beijo na ânsia febril de amante incontestado, são polos recebendo o meu desejo nos momentos sublime de pecado... Teus seios!... nada existe  que os encarne!... São divinos pecados da Criação,  são dois poemas de amor feito de carne!... (J. G. de Araújo Jorge).

Viu-se até aqui a oralidade como fator de ordenamento psíquico e corpóreo do bebê.  Nesse segundo momento, busco situar o significado do seio materno como objeto de apoio do vínculo psicossexual na fase oral, conforme propõe Freud (1905, p. 210). Posto isso, pergunto: a psicanálise pensa o seio para além de uma fonte de alimento? Poderia ser a questão alimentar a única coisa a ser pensada aí pelo freudismo, pintada pela arte e dita pelo poeta?
 Guy Robert (1975, p. 88) escreveu sobre o assunto e orienta que a história da arte é um caminho seguro à busca do significado do seio, pois, por meio de tal história, verifica-se a importância e simbologia dada a tal órgão:

As Vênus célebres de Willendorf ou de Lespugue, as de Savignano ou de Laussel, as de Grimaldi ou de Malta, as de Dolny-Vestonice ou da Gruta de Madalena, traduzem todas a dupla importância dada aos seios nas mais antigas imagens que se conhecem, saindo da própria franja da emergência do homem no panorama cósmico: importância direta e real, e também importância alusiva e simbólica. Desde algumas centenas de séculos, nas grutas, nas pinturas rupestres, na pedra ou no marfim, a deusa-mãe com seios proeminentes persegue a imaginação do artista, do talhador de imagem, como dizem muitas vezes os primitivos, e encontra, a partir das civilizações dos Sumérios, dos Indus, dos Egípcios, as formulações duma variedade que demonstra generosamente a estrutura arquetipal.

Nesse seguimento, Robert (ibidem, p. 87) pontua que é possível verificar a vivacidade de tal estrutura arquetipal “em Creta, há mais de 5000 anos, onde o seio já tinha conquistado toda a sua riqueza simbólica, e evocava a Criação, a Natureza, a Mãe que dá à luz o filho e o alimenta”. Para o autor (ibidem), “um simples vasinho de terracota que traz bem escrita na fenomenologia de sua própria matéria o resumo fulgurante das forças telúricas que estabelecem o ritual da criação contínua”, a saber, “a terra, misturada com água, cozida ao fogo e secada ao ar, realiza a síntese dos quatro grandes elementos naturais, nitidamente distinguidos na filosofia grega por Empédocles, quinze séculos mais tarde” (ibidem).
 O tema do seio atravessa o tempo e a história e contempla a arte moderna com o nu feminino, atraindo, assim, a atenção de numerosos artistas, tais como: “Matisse, Picasso (cuja obra, em grande parte, é erótica), Maillol, o Rouault das raparigas de 1906, Laurens, Bonnard, Valadon, Modigliani, Gromaire, Ernst, Rodin, Orozco, Goerg, Delvaux, Chagall, Lehmbruck, Vigeland, Moore, Giacometti” (ibidem, p. 95). Robert diz que “a litania poderia continuar a alongar-se, e interrompemo-la para citar apenas um quatro de Dali que concretiza uma forma de obsessão do seio na arte moderna, A premonição da Guerra, 1936” (ibidem). O autor conclui que, independentemente da época, as várias leituras seiográficas da história da arte traçam o relevo notável do seio, que tem uma função privilegiada na dimensão erótica da condição humana universal.
 O zoólogo e filósofo inglês Desmond Morris (2005, p. 138) concorda e é direto no assunto: “os seios femininos têm duas funções biológicas, uma parental e outra sexual”. Morris considera que,

Para a primeira função, eles funcionam como duas gigantescas glândulas sudoríparas que produzem um suor modificado que chamamos de leite. Os tecidos glandulares que produzem leite incham durante a gravidez, tornando os seios maiores e os vasos sanguíneos que irrigam esses tecidos mais evidentes na superfície da pele. À medida que vai se formando, o leite passa por canais que levam a um reservatório chamado seio lactífero, situado no centro da mama, por trás da aréola amarronzada que circunda os mamilos. De cada seio lactífero partem de quinze a vinte tubos, os ductos lactíferos, em direção a cada mamilo (ibidem).

Já na segunda função, e a que mais nos interessa aqui, Morris (ibidem, p. 141) retrata o seio como um símbolo sexual. Para o autor, “o seio constitui, antes de mais nada, um atractivo sexual (MORRIS, apud EDUARD BELTRAMI, 1975, p. 132). O zoólogo propõe

 Considerações a este respeito e faz notar que o homem, ao nascer, é também o animal mais desprotegido, o que mais necessita dos pais, e durante mais tempo. E para que haja uma boa maturação da criança-homem, será necessária a existência de um par de pais relativamente estável. Para o autor, o que permitirá e permitiu a estabilidade do casal humano é a sexualidade. Contrariamente ao que se julga, mesmo que a sexualidade force ou provoque por vezes instabilidade em certos lares, constitui, apesar de tudo, um enorme factor de estabilidade do casal. E os seios seriam, digamos, um substituto dos órgãos genitais e serviriam para atrair os machos para as fêmeas. Se nos reportarmos à época em que os machos iam caçar juntos para procurar alimento, era necessário que tivessem uma motivação para voltar a ver a mulher e os filhos e partilhar com eles o alimento. Morris julga que a sexualidade era um motivo suficiente (apud, ibidem p. 132-3).

É esse mesmo seio extremamente sexualizado, quer seja pela cultura, quer seja arte ou pela própria condição humana, que Freud (1905, p. 171) inscreve no campo das primeiras satisfações sexuais do sujeito. Nas conferências introdutórias sobre psicanálise (1915, p. 319), Freud é claro quanto à questão: “sugar ao seio materno é o ponto de partida de toda vida sexual, o protótipo inigualável de toda satisfação sexual ulterior, ao qual a fantasia retorna muitíssimas vezes, em época de necessidade”, e o pai da psicanálise acredita que isso faz do homem um incansável buscador de prazer, cuja renúncia de um prazer já vivenciado é duro demais para ele (1905, p.123). Por isso,

[...] o eu do homem é educado pouco a pouco para apreciar a realidade externa e para obedecer ao princípio de realidade por influência da pressão exterior. Nesse processo tem que renunciar de maneira transitória ou permanente a diversos objetos e metas para os quais está voltada sua busca de prazer – não só sexual. Mas sempre é difícil para o homem a renúncia ao prazer; não a leva a cabo sem algum tipo de compensação. Por isso reservou uma atividade da alma em que concede a todas estas fontes de prazer e a estas vias abandonadas uma sobrevivência, uma forma de existência que as emancipa do requisito da realidade e do que chamamos 'exame de realidade'. (Freud, 1986, p. 339)

     De todo modo, esse ser do prazer e para o prazer está baseado em suas primeiras satisfações (ainda no seio materno), consideradas por Freud as mais importantes. Nesse aspecto, o próprio Freud (1915, 319) escreve que “se um bebê pudesse falar, ele indubitavelmente afirmaria que o ato de sugar o seio materno é de longe o ato mais importante de sua vida”, e o autor diz que “nisto o bebê não se engana muito, pois nesse único ato está satisfazendo de uma só vez duas necessidades vitais. Por isso, não nos surpreendemos ao saber, por meio da psicanálise, quanta importância psíquica conserva esse ato durante toda a vida” (ibidem).
Debruçado sobre a riqueza da experiência mais primeva e, portanto, mais original da vida do sujeito, Freud diz:

não posso dar-lhes ideia da importante relação entre esse primeiro objeto e a escolha de todos os objetos subsequentes, dos profundos efeitos que eles têm em suas transformações e substituições até mesmo nas mais remotas regiões de nossa vida sexual (ibidem).
  
Desse modo, a concepção freudiana (1905, p. 210) não hesita em reconhecer os primeiros vínculos sexuais como sendo os mais importantes de todos. Daí

resta, mesmo depois que a atividade sexual se separa da nutrição, uma parcela significativa que ajuda a preparar a escolha do objeto, e dessa forma, restaurar a felicidade perdida. Durante todo o período de latência a criança aprende a amar outras pessoas que a ajudam em seu desamparo e satisfazem suas necessidades, e o faz segundo o modelo de sua relação de lactente com a ama e dando continuidade a ele (ibidem).

Conforme venho analisando, Freud faz aqui um lembrete de caráter conclusivo, que define a amamentação no seio materno como “modelar para todos os relacionamentos amorosos” (ibidem), e que “o encontro do objeto é, na verdade, um reencontro” (ibidem). O termo objeto empregado por Freud pede também um lembrete, pois

Nos escritos psicanalíticos, o termo objeto encontra-se, quer sozinho, quer em numerosas expressões como escolha, amor de objeto, perda do objeto, relação de objeto,  etc., que podem desorientar o leitor não especializado. O objeto é tomado num sentido comparável ao que confere a língua clássica (“objeto da minha paixão, do meu ressentimento, objeto amado”, etc.). Não deve evocar a noção de “coisa”, de objeto inanimado e manipulável, tal como esta se contrapõe comumente às noções de ser animado ou de pessoa. Estes diferentes usos do termo objeto em psicanálise têm sua origem na concepção freudiana da pulsão. Freud, logo que analisa a noção de pulsão, distingue o objeto da meta: “introduzamos dois termos: chamamos objeto sexual à pessoa que exerce a atração sexual e meta ou objetivo sexual à ação a que a pulsão impele.” “... o objeto da pulsão é aquilo em que ou por que a pulsão pode atingir a sua meta” (2a). Ao mesmo tempo, o objeto é definido como meio contingente da satisfação: “É o elemento mais variável na pulsão, não está ligada a ela originalmente, mas só vem colocar-se aí em função da sua aptidão para permitir a satisfação” (LAPLANCHE, 1987, P. 322-3).

 A amamentação no seio como objeto primeiro da fase oral abre janela a duas questões: uma que se direciona à pulsão instintiva (autopreservação), e a outra que se erige à pulsão sexual; a isso, Garcia-Rosa define do seguinte modo: “o objeto do instinto é o alimento, enquanto o objeto da pulsão sexual é o seio materno” (2009, p. 100). Em relação a isso, Freud (1905, p. 171) diz que “a princípio, a satisfação da zona erógena deve ter-se associado com a necessidade de alimento”, para ele (ibidem), “a atividade apoia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente delas”. Antes de dar continuidade a essa questão do apoio, é procedente uma pergunta: o que caracteriza a vida mental do bebê aí nesse processo de dependência e independência, isto é, de junção e separação?
Buscando respostas para tal, Freud (1914 - 1916, pp. 138 - 9) escreve que, não somente aí, mas de modo geral, a vida mental “se rege por três polaridades, as antíteses Sujeito (ego) – Objeto (mundo externo), Prazer – Desprazer, e Ativo – Passivo. As três polaridades da mente estão ligadas umas às outras de várias maneiras altamente significativas”. Para Freud, “existe uma situação psíquica primordial na qual duas delas coincidem. Originalmente no própria começo da vida mental, o ego é catexizado com os instintos, sendo, até certo ponto, capaz de satisfazê-los em si mesmo” (ibidem). O pai da psicanálise denomina “essa condição de ‘narcisismo’, e essa forma de obter satisfação, de ‘auto-erótica’. Nessa ocasião, o mundo externo não é catexizado com interesse (num sentido geral), sendo indiferente aos propósitos de satisfação” (ibidem, pp. 139 – 140). Portanto, “durante esse período... o sujeito do ego coincide com o que é agradável, e o mundo externo, com o que é indiferente (ou possivelmente desagradável, como sendo uma fonte de estimulação)” (ibidem). Para Freud,

Na medida em que o ego é auto-erótico, não necessita do mundo externo, mas, em consequência das experiências sofridas pelos instintos de autopreservação, ele adquire objeto daquele mundo, e, apesar de tudo, não pode evitar sentir como desagradável, por algum tempo, estímulos instituais internos. Sob o domínio do princípio de prazer ocorre agora um desenvolvimento ulterior no ego. Na medida em que os objetos que lhe são apresentados constitui fonte de prazer, ele os toma para si próprio, os ‘introjeta’... Assim, ‘o ego da realidade’, original, que distinguiu o interno e o externo por meio de um sólido critério objetivo se transforma num ‘ego do prazer’ purificado, que coloca a característica do prazer acima de todas as outras. Para o ego do prazer, o mundo externo está dividido numa parte que é agradável, que ele incorporou a si mesmo, e num remanescente que lhe é estranho. Isolou uma parte do seu próprio eu, que projeta no mundo externo e sente como hostil. Após esse novo arranjo, as duas polaridades coincidem mais uma vez: o sujeito do ego coincide com o prazer, e o mundo externo com o desprazer (com o que anteriormente era indiferente) (ibidem, pp. 140 – 41).

Sendo o objeto levado do mundo externo para o ego, a princípio, pelos instintos de autopreservação, leva Garcia-Roza entender que “o apoio a que se refere Freud não é o da criança mãe, mas o da pulsão sexual em outro processo não sexual, sobre uma das funções somáticas” (2009, pp. 99 – 100). Para o psicanalista (ibidem, p. 100) “essa função somática vital, que possui uma fonte, uma direção e um objeto específicos, é o próprio instinto. O modelo dessa função somática vital tomada por Freud é o da amamentação no lactente”. Assim, “nesse primeiro momento, “o objeto específico” não é, como apressadamente poderíamos supor, o seio da mãe, mas o leite. É a ingestão do leite, e não o sugar o seio, o que satisfaz a fome da criança” (ibidem). Desse modo,

Em termos instintivos, a função de sucção tem por finalidade a obtenção do alimento e é este que satisfaz o estado de necessidade orgânica caracterizada pela fome. Mas, ao mesmo tempo em que isso ocorre, ocorre também um processo de natureza sexual: a excitação dos lábios e da língua pelo peito, produzindo uma satisfação que não é redutível à saciedade alimentar apesar de encontrar nele o seu apoio (ibidem).

A psicanalista Silvia Maria Abu-Jamra Zornig (2006, p. 3) comenta a questão e pontua que Freud utiliza o termo apoio justamente “para demonstrar que se a sexualidade se apóia em uma função de conservação da vida, vai se destacar dela ao buscar uma satisfação que excede esta função instintiva”. Garcia-Roza retoma a discussão e dá sequência à fala de Zornig: “quando Freud articula a sexualidade às necessidades básicas do indivíduo, quando “apoia” a pulsão no instinto, não é para as semelhanças entre ambos que está apontando, mas sim para as suas diferenças” (2009, p.102). Assim, “a própria noção de “apoio” ... assinala menos uma semelhança do que uma diferença e uma distância. É para o “fantasma” que se dirige o desejo, e não para o real; é ao nível da representação que se pensa a psicanálise” (ibidem).
No tocante à questão do apoio, J. Laplanche é bem vindo à discussão. Ele ensina que em

Freud, o que é original na concepção do apoio não é o apoio sobre outrem (não é o fato de se ter necessidade, por assim dizer, de uma muleta na vida, se bem que, de maneira derivada, possa levar a isso), mas o apoio de dois modos de funcionamento um sobre o outro. O modo de funcionamento sexual, em sua origem, baseado num funcionamento não-sexual  (1980, p. 44).

No que diz respeito à relação entre ambos os funcionamentos, pode-se dizer que “é no próprio momento da alimentação, da sucção no seio e da ingestão do leite, que se produziu a primeira experiência sexual” (ibidem). Mas afinal, em vias psicanalíticas, o que isso significa dizer? Para Laplanche (ibidem), significa dizer que “no próprio transcurso da alimentação surgiu um prazer, que não é o da saciedade nem o de apaziguamento, nem, por conseguinte, o prazer da função”. Mas então, qual a natureza desse prazer? Sem sombras de dúvidas, trata-se de “um prazer suplementar, marginal, nascido precisamente nas bordas dos lábios” (ibidem). Para Laplanche (ibidem), “Freud emprega, nesse contexto, o termo Nebenwirkung, que significa: ação colateral, efeito marginal... Mas também aí o marginal é a própria coisa, ou seja, a sexualidade”. 
            Laplanche assinala que “mais em breve, ainda na fase oral, a necessidade de repetir a satisfação sexual separar-se-á da necessidade de nutrição” (ibidem, p. 45). E isso leva o apoio a comportar dois tempos:

Um tempo de apoio propriamente dito, que é um apoio da atividade sexual sobre a atividade de autoconservação, e um tempo de desligamento e de retrocesso em auto-erotismo... O apoio é, pois, a relação original dos dois tipos de pulsões, relação que é feita, ao mesmo tempo, de apoio mas também de tomada de distância (ibidem).

Tal noção de apoio abre terreno para a seguinte questão: Levando em consideração os diversos elementos da pulsão, de que forma essa passagem se torna possível? Esse é um problema que Laplanche busca resolver com argumentações tais como:

Em primeiro lugar, quanto ao objeto. Longe de pensar que a pulsão sexual, no chupar, não tenha objeto, Freud lembra-nos por diversas vezes que, ao contrário, ele encontra seus objetos numa via que lhe é indicada pela autoconservação. Há uma via que nos faz passar do objeto alimentar, que é o leite, para o objeto sexual, que é o seio. É a significação que atribuo a uma expressão empregada outrora por Lacan, a de objeto metonímico. De fato, o seio está em relação de contigüidade com o leite e, no movimento do apoio, há um deslocamento metonímico. E, se tivermos em mente essa decalagem do leite ao seio, seremos levados a dar uma significação irônica a esta frase famosa de Freud: “Encontrar o objeto sexual não é, em suma, senão reencontrá-lo.” Pois justamente, e é isso o que torna a busca sexual incessante, o objeto perdido, por definição, não é aquele que será reencontrado ou mesmo o que será procurado. O objete perdido é o objeto alimentar, é o leite, seja no aleitamento ou no desmame, mas é no momento em que se perde o leite que o seio, como símbolo, como substituto metonímico, ocupa o seu lugar. Tanto assim que essa expressão supõe um engodo original, fundamental, que desencadeia para sempre a insatisfação da busca sexual (ibidem).

              Em ralação a tal insatisfação, o psicanalista Antonio Quinet (2008, p. 78) busca o coito como um exemplo: “quanto mais se transa mais se experimenta a ausência de relação entre sexos. O depois do ato torna, a posteriori, fugaz, efêmero e inapreensível e jogado para o futuro para que se repita sempre melhor”. Garcia-Roza ponga na questão de Quinet para assinalar que o que entra em jogo aí é o papel do objeto, pois “na concepção freudiana do desejo tal papel nada tem que ver como papel desempenhado pelo objeto numa concepção empirista naturalista” (2009, p. 145). Segundo o autor (ibidem), “o objeto do desejo não é uma coisa concreta, que se oferece ao sujeito, ele não é da ordem das coisas, mas da ordem do simbólico”. Desse modo,

o desejo desliza por contiguidade numa série interminável na qual cada objeto funciona como significante para um significado que, ao ser atingido, transforma-se em novo significante e assim sucessivamente, numa procura que nunca terá fim, porque o objeto último a ser encontrado é um objeto perdido para sempre (ibidem).

Para Garcia-Roza (2004, p. 84), a busca por tal objeto

é governada pelo princípio de prazer, e como esse se exerce sobre as representações, fazendo com que a energia (Q’n) se transfira de representante para representante segundo os caminhos da facilitação, ficando interminavelmente girando em torno de um centro que nunca é atingido e que Freud chama de das Ding. A partir do momento em que a pulsão constitui seu primeiro representante, instaura-se uma proximidade em relação a das Ding, mas ao mesmo tempo também uma distância. Essa distância é a mesma para todos os representantes, não havendo um que seja mais próximo de das Ding do que outros. Uma vez constituído o registro das Vorstellungen, todas são eqüidistantes do objeto perdido, a saber, o seio materno.

             Posto isso, não é demais concluir que em tal objeto encontra-se a pulsão da qual o indivíduo necessita para se projetar à vida, buscando e desejando a partir de uma base psíquica, sendo esta extremamente de caráter oral. Só para amarrar essa minha deixa, “o nível oral é tido como o primeiro na séria libidinal por indicar a estrutura que será elementar em todos os outros estágios” (GORGE LUIZ GONÇALVES DOS SANTOS, 2009, p 112).  
Essa discutida relação entre seio e alimento, da qual a dupla face da oralidade depende para se manifestar (dupla face esta defendida pelo psicanalista português Victor Manoel Andrade (2013, p. 66) como aspectos auto preservativos e sexual ao mesmo tempo) é o caminho pelo qual Freud irá inscrever e dar corpo à sexualidade infantil.  Assunto que será abordado em nossos próximos passos.

A SEXUALIDADE NOS PRIMÓRDIOS DA FASE ORAL
            Se na tópica anterior foi dado maior foco ao seio com vínculo às primeiras experiências psicossexuais do sujeito, aqui busco priorizar a oralidade como via primeira a tais experiências. E para começar, sou levado a dizer que há algo no senso comum que muito chama a minha atenção: aprende-se, desde cedo, que a nudez infantil não é passível de escandalização.  A criança que desfila a bel prazer sem roupas parece não ter muito o que  esconder ou proteger dos olhares alheios. Desse modo, pode-se inferir que aí, nu e vergonha não passam pelo crivo do mesmo significado. Essa é também uma questão que não escapa à análise de Freud: “a criança pequena é, antes de mais nada, desprovida de vergonha, em certo período de seus primeiros anos mostra uma satisfação inequívoca no desnudamento do corpo” (1905, p. 181). Em contra partida, isso não é motivo para que Freud (1893 – 1899, p. 266) deixe de perceber nela a capacidade de todas as atividades psíquicas, inclusive sexual.  
Mas a pergunta é: até que ponto a sexualidade infantil proposta por Freud se confunde com a sexualidade que pede esconderijo de determinadas regiões do corpo? Independentemente da resposta, é possível identificar que a situação evoca defesa à pureza da criança.   Freud (1905, p. 211) reforça isso e aponta à liberdade que tem a mãe (ou quem cuida) para deslizar as mãos pelo corpo de seu bebê sem empregar outro sentimento que não seja o de ternura.  Em outro momento, Freud desenvolve isso com mais clareza e lucidez:

Sem dúvida, a experiência deve ter ensinado aos educadores que a tarefa de docilizar a tendência sexual da nova geração só poderia ser efetuada se começassem a exercer sua influência muito cedo, se não esperassem pela tempestade da puberdade, mas interviessem logo na vida sexual das crianças, que é preparatória para a puberdade. Por essa razão, todas as atividades sexuais foram proibidas às crianças e vistas com maus olhos; erigiu-se o ideal de tornar a vida das crianças assexual, e, no decorrer do tempo, as coisas chegaram ao ponto de as pessoas realmente acreditarem que as crianças sejam assexuadas e, subseqüente, de a ciência proclamar isso como doutrina. Para evitar que sejam contraditas suas crenças e suas intenções, a partir daí as pessoas passam por alto as atividades sexuais das crianças (que não são de se desprezar) ou se mostram contentes quando a ciência assume um ponto de vista deferente com relação a tais atividades. As crianças são puras e inocentes, e todo aquele que as descreve de outra maneira, pode ser acusado de ser um blasfemador infame dos termos e sagrados sentimentos da humanidade (1915 – 1916, p. 317 – 18).

O psicanalista Doris Rinaldi (2008, p. 291) concorda com todo esse cenário que visava proteger a inocência da criança, e pontua que Freud, com a teoria da sexualidade infantil, causou enorme desconforto não somente à sociedade civil, mas também à sociedade científica. A priori, deve-se pensar que é pouco vento para tamanha tempestade; todavia, há de se entender também que não se trata simplesmente de um Freud propondo mais uma teoria. Ao propor a sexualidade infantil, o que Freud está fazendo, antes de tudo, é por em xeque a inocência da criança e, indo além, questionar a relação de ternura entre o bebê e a mãe, concebendo a tal relação um caráter extremamente sexual. Nas palavras do próprio Freud (1905, p. 211), aprende-se que “a mãe provavelmente se horrorizaria se lhe fosse esclarecido que, com todas as suas expressões de ternura, ela está despertando a pulsão sexual de seu filho e preparando a intensidade posterior desta”. 
            Freud é incisivo na questão, e busca detalhar da melhor forma possível: “o trato da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte incessante de excitação e satisfação sexuais vindas das zonas erógenas” (ibidem, p. 210). Além disso, o pai da psicanálise (ibidem, pp. 210 – 11) acredita que quem cuida do bebê, geralmente a mãe, “contempla a criança com os sentimentos derivados de sua própria vida sexual: ela a acaricia, beija e embala, e é perfeitamente claro que a trata como o substituto de um objeto sexual plenamente legítimo”. Mas que relevância tem isso para o desenvolvimento psicossexual da criança?  
Para a psicanalista Silvia Maria Abu-Jamra Zornig (2006, p. 4), tal relação é relevante porque é fundamental para o desenvolvimento libidinal da fase oral, pois esta não tem que ser pensada tão somente como privilegiadora de “zonas erógenas do corpo em um determinado momento do desenvolvimento global da criança, mas também como inscrições que se fazem no psiquismo a partir das relações estabelecidas entre a criança e os adultos que ocupam a função de pais”. Desse modo, “é preciso que uma mãe dê a seu bebê uma dimensão subjetiva, um estatuto singular para que ele possa se reconhecer, além de um corpo biológico, orgânico, como um sujeito dotado de importância para o outro” (ibidem). E “assim, narcisismo implica na possibilidade de amar e reconhecer um corpo que foi investido e erotizado por um outro na infância” (ibidem): a mãe.  Dessa forma, para Elisabeth da Rocha Miranda (2008, p. 156), “banhamos as raízes de nosso desejo no desejo dela. Para toda nossa vida, em nossa maneira de falar, em nosso estilo, carregamos a marca do desejo, dos estigmas e do gozo de nossa mãe”.
            Apesar de tudo, a mãe se mantém indiferente a isto, pois Freud (1905, p. 211) ensina que ela “considera seu procedimento como um amor “puro”, assexuado, já que evita cuidadosamente levar aos genitais da criança mais excitações do que as inevitáveis no cuidado com o corpo”, para tanto, Freud (ibidem) adverte que “a pulsão sexual, como bem sabemos, não é despertada apenas pela excitação da zona genital; aquilo que chamamos ternura um dia exercerá seus efeitos, infalivelmente, também sobre as zonas genitais”. Ao propor que a pulsão sexual não depende tão somente da excitação da zona genital, o que Freud está dizendo é que o corpo do sujeito (aqui do bebê) se comporta, todo ele, como uma zona erógena. E aqui surge uma pergunta que talvez não queira calar: levando em consideração essa totalidade do corpo como passível de excitação sexual, é possível falar de um ponto de partida da mesma, isto é, há uma primeira zona erógena?
            Para a teoria freudiana, não restam dúvidas em relação a isso. Freud (1905, p.171) defende que há sim a primazia de tal zona e que esta é de natureza exclusivamente oral. Para ele (ibidem), ainda nos primeiros atos da amamentação, “os lábios da criança comportam-se como uma zona erógena, e a estimulação pelo fluxo cálido de leite foi sem dúvida a origem da sensação prazerosa”. Freud (ibidem) acredita que, “a princípio, a satisfação da zona erógena deve ter-se associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apoia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida”, isto é, instintiva. Em contra partida, como se viu na tópica anterior, a natureza da sexualidade proposta por Freud nada possui de caráter instintivo, que

tem como modelo um comportamento que se caracteriza por sua finalidade fixa e pré-formada, com um objeto e objetivo determinados, enquanto a noção freudiana de sexualidade defende a idéia de que a sexualidade humana não é instintiva, pois o homem busca o prazer e a satisfação através de diversas modalidades, baseadas em sua história individual e ultrapassando as necessidades fisiológicas fundamentais. Assim, se a sexualidade se inicia com a anatomia (no nascimento), sua conquista depende de um longo percurso durante a construção da subjetividade da criança (ZORNIG, 2006, p. 2).

É no bojo de tal percurso que “a necessidade de repetir a satisfação sexual dissocia-se então da necessidade de absorção de alimento – uma separação que se torna inevitável quando aparecem os dentes e o alimento já não é mais exclusivamente ingerido por sucção, mas é também mastigado” (FREUD, 1905, p. 171). Nesse estágio,

A criança não se serve de um objeto externo para sugar, mas prefere uma parte de sua própria pele, porque isso lhe é mais cômodo, porque a torna independente do mundo externo, que ela ainda não consegue dominar, e porque desse modo ela se proporciona como que uma segunda zona erógena, se bem que de nível inferior. A inferioridade dessa segunda região a levará, mais tarde, a buscar em outra pessoa a parte correspondente, os lábios (ibidem).

Mas o que explica esse caráter secundário da segunda zona erógena? Para Freud (ibidem, p. 173), a questão é simples, e pode ser esclarecida mediante a primeira satisfação obtida pela sucção do lactente, pois é em tal satisfação que está o alvo sexual infantil; desse modo, a concepção freudiana (ibidem) postula que “o alvo sexual da pulsão infantil consiste em provocar a satisfação mediante a estimulação apropriada da zona erógena que de algum modo foi escolhida”. Para o pai da psicanálise (ibidem), “essa satisfação deve ter sido vivenciada antes para que reste daí uma necessidade de repeti-la, e é lícito esperarmos que a natureza tenha tomado medidas seguras para que essa vivência não fique entregue ao acaso”; isto é, esquecida quanto marco da sexualidade infantil e, por conseguinte modelo à sexualidade humana, em suas diversas fases da vida. É como postula o próprio Freud (1905, p. 171):

Quem já viu uma criança saciada recuar do peito e cair no sono, com as faces coradas e um sorriso beatífico, há de dizer a si mesmo que essa imagem persiste também como norma da expressão da satisfação sexual em épocas posteriores da vida.

O psicanalista Nelson Ernesto Coelho Jr. considera que,

Embora Freud fizesse inicialmente uma clara diferenciação entre a sexualidade infantil e a sexualidade posterior ao período da puberdade, já fica claro nessa passagem uma das principais características da teoria psicanalítica, ou seja, que processos psíquicos infantis, tanto em sua dimensão de ação como afeto e representação, tende a ser modelo para as relações adultas (2001, p. 4).

Segundo a psicanalista Terezinha de Camargo Viana (2005, p. 7), essa é uma questão que pode ser compreendida a partir da natureza paradoxal do infantil, que “remete a um período que é, ao mesmo tempo, esquecido e determinante”. Assim,

No processo de constituição psíquica, é o momento de maior capacidade de receber e reproduzir impressões. São impressões esquecidas que deixam os mais profundos traços em nossas mentes, e que são tomados eles mesmos como traumáticos e constituintes, com efeito determinante. Nesse sentido, o “traumático” se interioriza: não seriam mais as experiências como tais, mas os seus traços o que adquire estatuto traumático. Inscrições e traços esquecidos, mas não apagados. Freud enfatiza que não se pode falar de apagamento ou abolição, mas de recalque... Assim, o adulto portará para sempre o infantil que o constitui. As pulsões parciais serão submetidas à ação do recalque e do processo secundário, mas nunca abandonarão seus intentos de retorno ao prazer primordial, agora elaborado teoricamente como fantasia de desejo (ibidem).

Apesar de Freud ter situado esse prazer primordial na fase oral, de buscar na satisfação alimentar (instintiva) referencial para discorrer sobre a satisfação de natureza sexual (psicológica) e de caracterizar (1905) as zonas erógenas como sendo uma parte da pele ou da mucosa, em que certos tipos de estimulação provocam uma sensação prazerosa de determinada qualidade, adverte que “os estímulos produtores de prazer estão ligados a condições especiais que desconhecemos. Entre elas, o caráter rítmico deve desempenhar algum papel, impondo-se aqui a analogia com as cócegas” (ibidem, p. 172). Para o autor, “o menos seguro, parece, é se o caráter da sensação prazerosa provocada pelo estímulo pode ser designado de “particular”, particularidade esta em que estaria contido justamente o fator sexual” (ibidem), e Freud completa: “em matéria de prazer e desprazer, a psicologia ainda tateia tanto no escuro que as hipóteses mais prudentes são as mais recomendáveis” (ibidem).
Por tudo, o psicanalista Doris Rinaldi (2008, p 291) contribui à conclusão desse último percurso que gira em torno da sexualidade infantil, ainda nos primórdios da oralidade; pois, em sua louvável colocação, o autor considera que, “ao inscrever o sexual no infantil, reconhecendo a existência de uma “disposição perverso-polimorfa” como típica da sexualidade infantil, Freud rompeu com os padrões morais que guiavam a ciência de sua época” e, além disso, “indicou que a sexualidade humana é marcada pela desarmonia e pela desordem. A diferença dos sexos não é, para a psicanálise, a diferença anatômica” (ibidem).  Rinaldi (ibidem) sustenta que se tal diferença “tem algum valor, é pelas suas “consequências psíquicas” e, como Freud enunciava em 1925, que seguem os destinos do Édipo e da castração: o falo se apresenta como o significante do desejo”.
Para Rinaldi (ibidem), “se a realidade do inconsciente é sexual, não há, entretanto, inscrição da diferença sexual no inconsciente”. Assim, o autor (ibidem) conclui que “a integração da sexualidade está ligada ao reconhecimento simbólico, como forma de dar contorno àquilo que o sexo nos apresenta de real e enigmático”, e, conforme se verificou, a primazia da oralidade como ponto de partida à sexualidade, é o principal pilar de sustentação à sexualidade humana, quer seja ela infantil, que seja o que daí segue.  É como postula Georges Bataille (2013, p. 329): “o impulso sexual começa com a vida. E as desordens que, desde a terna infância, esse impulso nos impõe, têm consequências na idade adulta. Do berço ao leito de morte, a sexualidade está na base de uma agitação”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo de uma questão que me permitia investigar a natureza da oralidade e a gênese da sexualidade aí pensada, em Freud, visualizo nesse ponto de chegada que não fiz outra coisa senão me deparar com a complexidade da formação do caráter do bebê e, por conseguinte, humano, em seu estado mais precoce, e porque não original? Formação esta que reza a sua totalidade, isto é, corpo e subjetividade. Os achados no campo arqueólogo da oralidade levam a uma compreensão de que, diferentemente do saber popular, o ser humano é capaz, desde seu momento mais primevo, de todas as atividades sexuais psíquicas, e também muitas atividades somáticas.  A natureza desse material é a simplificação de que a sexualidade humana está para além de órgãos genitais e de duas glândulas reprodutoras; é assim que Freud significa a sexualidade e, mais que isso, grifa o seu objeto primeiro (amamentação no seio materno) como modelar às reações e satisfações humanas, que envolvem o sentir, desejar e ser desejado. Em suma, concluo que, mediante ao caminho percorrido, o sentido das ações humanas tem um ponto de partida para o qual sempre é possível retornar, como direção base... essa é a natureza da fase oral.



[*] 
** É psicólogo, tem formação em Teologia e Filosofia pela Universidade Católica do Salvador (2004 / 2008, respectivamente). 

*** Graduou-se em Filosofia e Teologia pela Universidade Católica do Salvador (1987 / 1984 respectivamente). Fez especialização em Fundamentos Filosóficos da Psicologia e da Psicanálise na UNICAMP/ 1993. Desenvolveu seu mestrado em Filosofia da Psicanálise pela UNICAMP/ 1997 com fomento do CNPq. Doutorou-se em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas / 2003 como bolsista do CNPq. Realizou seu Pós doutorado em 2006 na Pontifícia Univercità Lateranense / Roma com fomento da Civitas Lateranensis. Atualmente é professor adjunto IV da UCSal junto ao programa em Família na Sociedade Contemporânea (conceito 5/ CAPES). Leciona nos cursos de Psicologia da Faculdade Social da Bahia e Santíssimo Sacramento. Orienta pesquisa e forma pesquisadores na seguintes temáticas: família, sujeição, subjetividade, sexualidade, psicanálise utilizando as metodologias bibliográficas e análise de arquivos. Lidera o Grupo de Pesquisa Epistemes da Subjetividade. Endereço eletrônico: menezesjex@hotmail.com
                    
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