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terça-feira, 26 de abril de 2016

COMPLEXO DE INFERIORIDADE: A VIDA DIANTE DO NADA


                                                                                                                              Por Djalma Andrade

No tocante ao exercício de minha profissão, tenho observado e concluído muitas questões referentes ao comportamento humano. Recentemente, cheguei à conclusão de que o complexo de inferioridade se comporta igualmente a um câncer silencioso, que vai anulando a sua vitima aos poucos, sem pressa, ao nada da vida.

Diariamente, passam por mim dezenas de pacientes. Entre um atendimento e outro, tenho notado que, na maioria dos casos, algumas queixas se repetem, dentre elas a falta de autonomia: falta de autonomia profissional, conjugal, familiar, afetiva, social, financeira e, principalmente, falta de autonomia para gerir a própria vida.

Tenho observado que tal realidade tem ligação direta com alguns complexos que se formaram no tocante à construção da história de vida, dentre eles sobressai o complexo de inferioridade. Percebo que são pessoas que têm projetos belíssimos, objetivos e sonhos, porém nunca deram um passo adiante na vida, em outras palavras, não conseguem sair do lugar. E, quando dão o primeiro passo, geralmente desistem antes do segundo. E isso alimenta, cada vez mais, o sentimento de baixa autoestima, sensação de impotência, vazio, inutilidade e apatia diante da própria vida.  É no bojo desses sentimentos que se alimenta a sensação de sujeito indigno, isto é, a pessoa passa, cada vez mais, a acreditar, piamente, que não é digna de conquistar nada, e a vida acontece desse jeito.

Mas, enfim, como se desenvolve o complexo de inferioridade? É claro que não podemos falar de uma fórmula precisa, mas tenho observado que a primeira infância se constitui como terreno fértil para germinação da questão. E explico o motivo: naturalmente, o desenvolvimento psíquico humano se dá em duas sociedades: a micro sociedade e a macro sociedade.  A micro sociedade corresponde a primeira e diria que a mais importante à formação psíquica do sujeito. É a sociedade família, onde se aprende e apreende os valores éticos e morais, os quais nos orientarão na macro sociedade, que é a sociedade que perpassa a família, englobando o social no todo.  

Infelizmente, em nossa cultura, o desenvolvimento do sujeito na primeira sociedade, isto é, no seio da família, dá-se, em muitos casos, em pé de comparação: é sempre o coleguinha que sabe se comportar, é sempre o coleguinha que tira as melhores notas na escola, resumindo, é sempre o coleguinha que vai ser alguém na vida, é sempre o outro. E é a partir dessas informações externas e familiares que a criança vai formando a sua autoimagem, e é justamente com ela que ele se apresenta a macro sociedade, relacionando-se e interpretando o mundo a partir dela.  

Geralmente, o ciclo de amizades dessas pessoas é muito empobrecido e fragmentado, sem solidez e constância, pois, como mecanismo de defesa, acabam desenvolvendo sentimento de inveja para com os amigos, o que acaba se tornando uma amizade desagradável, e o afastamento se torna inevitável. Ele costuma desenvolver o lema do coitadinho, da vítima, e o mundo sempre está contra ele, até Deus.  Além disso, quem sofre de complexo de inferioridade é muito comum que desenvolva comportamento de possessão no tocante às relações de amizade, conjugal... pois o outro que se aproxima de seus próximos é sempre visto como uma possível concorrência, ameaça, mas na realidade se trata mesmo é de insegurança.  

No complexo de inferioridade, o sujeito se enquadra no típico “carrega o mundo nas costas”. É aquele tipo prestativo em excesso, e sofre com o complexo do “sim”, isto é, diz sim para todo mundo, não consegue falar não para ninguém. A sua intenção é sempre agradar, é aí que busca seu valor. A nota sempre vem de fora, ele precisa escutar dos outros, e é por isso que não se cansa de dizer sim. Esse tipo de comportamento denota, geralmente, uma posição de submissão em relação ao outo, e é justamente aqui que se desenvolve a falta de autonomia diante desse outo e também de si, visto a necessidade da confirmação de alguém para existir como pessoa, o que não é possível.  


Nesse triste lema, a vida acaba acontecendo diante do nada, do zero afetivo e ativo, sem conquistas, nem mesmo de si. É a cristalização do sofrimento psíquico em seu grau mais elevado, de onde não tardam os sintomas depressivos e/ou algo da natureza. 

terça-feira, 8 de setembro de 2015

O COMPLEXO DE NARCISO NAS ÁGUAS DO FACEBOOK



Por Djalma Andrade

Estamos entrando em um campo que nos inscreve no paradoxo dos afetos pessoais e coletivos. Nessa investigação da imagem dos afetos nas águas do Facebook, a canção do rei Roberto Carlos, “Eu apenas quero” (1974), cai como luva nas mãos.

A música em pauta é marcada pelas suas inúmeras repetições do “Eu quero” (24x). A questão está no Eu precedido de desejo.  “Eu quero apenas cantar o meu canto, eu só não quero cantar sozinho”. No rol dessa necessidade narcísica, “eu quero ter um milhão de amigos (admiradores), e bem mais forte poder cantar”.

Com a chegada do Facebook, esse problema foi solucionado. O Eu prevalece, mas o “quero” deu lugar ao “posso”. Realidade e desejo se confundem em um mesmo espaço imaginário. Por meio de um acordo prévio, todos estão embebidos por um mesmo canto: eu acredito no que você posta, e você acredita no que eu posto - contrato psicológico.

Em um de seus trabalhos de pesquisa sobre o assunto, apresentado no XXXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Fortaleza, CE – 3 a 7/9/2012, Cláudio Cardoso de Paiva, atiça, de modo significativo, as labaredas dessa discussão:

O filme A Rede Social (David Fincher, 2011) consiste numa biografia de Mark Zuckerberg, inventor do Facebook, portanto exibe o “Sujeito na tela” e cria a oportunidade para compreendermos o espírito de Narciso na era da internet. A narrativa mostra os afetos característicos da personalidade narcisista, recalque, auto-estima baixa, ressentimento, egoísmo, crueldade, e parece ser uma história de superação: Zuckerberg driblou os rivais, ficou bilionário e fez uma revolução na comunicação. O slogan do filme é sintomático de um “estado psicossocial” típico da chamada “Geração Digital”, ligada nos games, celulares e computadores: “Você não consegue fazer 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos”. A narrativa é atravessada pelos afetos egóicos, agressivos, extremamente competitivos e predatórios: a ira, a inveja e o sentimento de vingança imperam nas falas e gestos, atualizando o diagnóstico clínico das “desordens do caráter narcisista”.

Vale pontuar que o fenômeno do narcisismo foi analisado nas obras de Freud e Jung, e estudos mais recentes, Eros e Civilização (MARCUSE, 1955), A cultura do narcisismo (LASCH, 1983) e Máquina de Narciso (SODRÉ, 1984); este último resgata o conceito para decifrar os desequilíbrios na equação “indivíduo, televisão e poder no Brasil”. Pelo outro lado da tela, na perspectiva do público, o fenômeno do narcisismo se mostra num misto de idolatria e vontade de aparecer. A figura simbólica de Narciso condensa uma eticidade reveladora dos estilos de conduta do ser humano com relação a “si-próprio” e aos indivíduos à sua volta. Como as outras mitologias antigas, Narciso traz consigo uma moral da estória: alerta para o risco de morte causado pela destemperança e fragilidade do ser diante do pathos arrebatador. E adverte, particularmente, com relação ao exagero no fascínio pela própria imagem, sem deixar de aludir à “virtude narcísica” que consistiria na arte de manter o equilíbrio entre a auto-estima, o cuidado de si, o orgulho próprio, e as vaidades e egoísmos extremados.

Dentro de um esquema pensado, o Facebook pergunta diretamente ao visitante: “No que você está pensando?”, remetendo-nos à máxima filosófica de Descartes: “Penso, logo existo”. Convém notar, o Facebook se dirige ao ego e refaz a pergunta milenar: “Quem é você?”. Assimilando a contribuição estético-filosófica de Martino (2010), percebemos que a matéria dos sites de conversação são as narrativas (falas escritas e escritas oralizadas). Ali, os atores produzem uma escrita de si, forjando uma identidade que criaram para si, na qual acreditam piamente. A perspicácia do pesquisador consiste em reformular assim a pergunta do oráculo Facebook: “Quem você pensa que é?”. A subversão é genial, pois resgata a crítica do ethos autoritário brasileiro, como o faz Da Matta, na obra Carnavais, malandros e heróis (1983), problematizando a caricata frase dos coronéis: “Você sabe com quem está falando?”


 Nas águas do Facebook, dificilmente vamos saber com quem estamos falando. Igualmente, dificilmente saberemos separar desejo de realidade, principalmente quando se trata de águas que refletem o poder de se ter um milhão de amigos. 

SAÚDE MENTAL E A REFORMA PSIQUIÁTRICA

Por Djalma Andrade 


INTRODUÇÃO
Dentro desse campo minado, no qual pretendemos entrar, somos sabedores de que, nele, a garimpagem das ideias tem com propósito nos conduzir por uma trilha que se abre em cima de questões que nos fazem direcionar nosso olhar para o louco, a loucura e a prática médica, buscando significar a realidade de algumas reformas nesse campo, bem como a reforma psiquiátrica e sanitária.  


UM BREVE OLHAR SOBRE O LOUCO, A LOUCURA E A PRÁTICA MÉDICA
A priori, nada nos é tão imperioso quanto termos como ponto de partida a seguinte afirmação: nem sempre a loucura foi sinônimo de doença, a antiguidade que o diga. Se assim o era, tal afirmação nos coloca a par dos porquês, que constituem o ponto crucial de nossa investigação: por que e a partir de que o desatino se transforma numa questão mórbida? É no bojo dessa pergunta que nos habilitamos a adentrar em nossa proposta de trabalho.    

É de nosso interesse apontar para uma direção que passa pelo crivo da relação médico-paciente. É claro que aqui subjaz uma questão de caráter política, mas, nesse momento, faz-se de maior importância salientar que há doenças e modificação de doenças. E isso já nos faz deduzir algo sobre o poder psiquiátrico, como também sobre a transformação do louco em doente, digno de um espaço (hospital/manicômio), onde, quando deveria ser um lugar de conhecimento, torna-se um lugar de provas.

O lugar em que se produzirá a doença será o laboratório, o tubo de ensaio; mas, aí, a doença não se efetua numa crise; reduz-se seu processo a um mecanismo, que se pode ampliar; reduz-se a doença a um fenômeno verificável e controlável. Nesse contexto, a prova se transforma em prova na estrutura técnica do laboratório e na representação do médico. 

Nessa temática, o saber constitui os poderosos pilares, os quais dão sustentação à prática psicanalítica, isso porque o que se busca é dizer a verdade da doença pelo saber que se tem dela. No cerne do saber, o médico é aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la na realidade pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente. Destarte, o sofrimento do louco e seu isolamento se transformam em adoecimento e os hospitais e clínicas tornam-se lugares possíveis desta manifestação. O olhar clínico tem nos prontuários suas fontes de consulta, distantes dos registros vivos de uma história de vida da pessoa. E é nesse emaranhado oceano, que envolve privilégio do conhecimento e negação da autonomia do indivíduo, que o poder psiquiátrico se produz mais e mais.

Frente à realidade, toda essa situação não fica a quem do destino, e logo desperta a atenção de olhares críticos, o que contribui para a formação de grupos que se movem em oposição à questão.
A despsiquiatrização, que aparece logo depois de Charcot, é certamente o primeiro e um desses movimentos que se rebela contra o modo pelo qual as coisas são conduzidas; todavia, no que diz respeito a tal movimento, este surge mais para maquiar, se assim posso dizer, do que para contribuir positivamente, a favor do louco, portanto, do sofrimento que é peculiar.

Assim, no que se refere à natureza da despsiquiatrização, não se trata tanto de anular o poder do médico quanto de deslocá-lo em nome de um saber mais exato, de lhe dar outro ponto de aplicação e novas medidas, mas a relação de poder, a grande ferida da questão, permanece imune a qualquer observação, viva no cerne da dinâmica hospitalar.

Contrapartida, surge mais um movimento (a antipsiquiatria) este se distancia da despsiquiatrização justamente por sua natureza que não poupa às criticas a questão do poder médico. O que temos agora não passa pelo crivo da maquiagem: esse jogo de uma relação de poder que dá lugar a um conhecimento, o qual funda por sua vez os direitos desse  poder, caracteriza a psiquiatria clássica. É justamente esse círculo que a antipsiquiatria procura romper: dando ao indivíduo a tarefa e o direito de levar a cabo sua loucura, levá-la até o fim, numa experiência para a qual os outros podem contribuir, mas nunca em nome de um poder que lhes seria conferido por sua razão ou por sua normalidade; destacando as condutas, os sofrimentos, os desejos do estudo médico que lhe havia sido conferido, emancipando-os de um diagnóstico e de uma sintomatologia que não tinham simplesmente valor de classificação, mas de decisão e de decreto.

Entender que o louco, em outrora, tivera um lugar na sociedade, é no mínimo instigante. Instigante porque a sociedade atual nos dá outro panorama, no qual não há espaço para o louco; nesse novo cenário social, o destaque agora é da loucura, em outras palavras, o insano não tem maior importância do que a sua insanidade.

  Em tempos outros, o insano se punha entre os deuses e os homens, era o mensageiro; de certo modo, o privilegiado... não possuidor da loucura, mas do dom. Dom que o transportava ao mundo dos deuses, mundo da lua... era o lunático. Nessa esfera, louco e loucura era uma só coisa. Ambos se confundiam no exercício diário de suas atividades. Portanto, o louco sempre existiu, todavia o doente é coisa recente.

A partir da revolução industrial, propriamente dito, o louco é separado de sua loucura e, por conseguinte, do convívio social, é aqui que ele se torna o doente. Nesse sistema, não há espaço para o “mensageiro”. Novo ritmo se impõe, e a produtividade dita o rumo do louco e da loucura, agora separados. No novo regime, onde se despontam olhares para a produção e consumismo, ambos regados pelo capitalismo, o louco não é o melhor exemplo: nada produz, é a verdadeira imagem do “vagabundo” disfarçado. Com isso, nada mais justo do que tirar essa gente do convívio social. É aqui que o louco é separado de sua loucura: enclausura o insano e liberta a sua insanidade, a Ciência e as indústrias farmacêuticas têm singular interesse nela. A partir de então, a Ciência muito se esforçou para avançar nessa área, mas os resultados são tão limitados quanto ao olhar que lançamos ao arco-íris: vemos que o arco-íres é composto por várias cores diferentes, mas não sabemos dizer, exatamente, onde cada uma começa e termina. 

Eis o principal desafio que a loucura impõe à Ciência: onde ela começa, onde ela termina? Como o próprio Foucault já assinalava: “não é a psicologia que explica a loucura, mas esta que explica a psicologia”. 

Em meio á usura científica, a loucura se transforma em doença mental e como patologia será teorizada e vivida política, social e culturalmente. O internamento passa, aos poucos, um valor terapêutico como consequência do reajustamento de gestos sociais, políticos e morais que desde mais de um século condenaram a loucura e o desatino.

As significações essenciais da loucura passam a se modificar com a Psicologia que está em vias de surgir. O conteúdo do louco clássico é retomado via conhecimento psicológico, baseado nas formas menos refletidas e mais imediatas da moralidade. A relação médico-doente tem, em Freud, plena aceitação com o surgimento da Psicanálise. Na direção dos médicos, se encaminham as estruturas de internamento organizadas por Pinel e Tuke. A alienação torna-se desalienante porque, no médico, ela se torna sujeito. O médico, enquanto figura alienante torna-se a chave da Psicanálise. “A psicanálise pode desfazer algumas das formas da loucura; mesmo assim, ela permanece estranha ao trabalho soberano do desatinado. Ela não pode nem libertar-se nem transcrever e, com razão ainda maior, nem explicar o que o que há de essencial nesse trabalho”(FOUCAULT, 1997).

Com maior “liberdade”, o louco se confronta com sua própria verdade. A loucura passará a falar a língua do “ser” humano, no conteúdo daquilo que ele é e no esquecimento desse conteúdo, pois a loucura não se esgota na verdade do louco, mas no seu enigma humano.

É nesse emaranhado horizonte de perspectivas inseguras que lançamos o nosso olhar para o destino da clínica, do manicômio. Aqui, o pensamento de Michel Foucault rejeita as ideias de teorias totalizantes. Sua preocupação é com análise arqueológica das formas de conhecimento e dos discursos, que operam historicamente nas instituições. Em sua obra O Nascimento da Clínica, destaca a forma como a Medicina moderna trouxe um novo recorte e com domínio se volta para o espaço do corpo individual. Surgindo daí um novo discurso, a Epistemologia da idade clássica caiu por terra e fez emergir novos signos, palavras, termos e jogos discursivos entre o falso e o verdadeiro.

A clínica professa, não produz conhecimento; é classificatória, já que o sintoma é o signo da doença. A Medicina dos sintomas abre lugar à Medicina dos órgãos. Um olhar vertical do médico observa a forma patológica da existência, seus tecidos íntimos lesionados explicam toda uma sintomatologia.

O sofrimento do louco e seu isolamento se transformam em adoecimento e os hospitais e clínicas tornam-se lugares possíveis desta manifestação. O olhar clínico tem nos prontuários suas fontes de consulta, distantes dos registros vivos de uma história de vida da pessoa.

A relação médico-paciente tornou-se, na maioria dos casos, um olhar sem escuta, investigação quase muda, que não dialógica, sem anamnese. O paciente é objeto e instrumento das ciências médicas. Medo, tristeza, isolamento por fatores incapacitantes que geram sofrimento deveriam servir como base de um processo relacional mais humanitário. Parece que não há vida nestes instantes, nenhum poder criativo que faça acontecer um modo mais original de ver, perceber, trocar ideias, que é o que, de fato, nos reconstitui existencialmente. Parece haver uma anestesia nas percepções!

Atendendo aos princípios de uma reforma psiquiátrica, a especialista em Filosofia Clínica, Idalina Krause, dá-nos a sua contribuição: “faz-se necessário uma nova Epistemologia, uma prática terapêutica diferente, menos medicamentos, mais conversa, menos exames de alta tecnologia, mais olhares atentos sobre a corporeidade, menos internação, mais acompanhamento, menos isolamentos, um pouco mais de liberdade, menos sofrimento, mais atenção e cuidados mínimos. Caso contrário, a clínica cairá provavelmente no esvaziamento, no descaso. Morrerá dos seus próprios venenos”; (Rev. Filosofia, ciência & vida. nº 45, p. 16). Uma tragédia anunciada, se assim possamos concluir.  

Sem catastrofismo, o destino é inconstante, mas influenciado pelas ações que afetam os rumos da existência, num exercício apaixonado e criativo. Os grandes infortúnios, os fados, se bem aproveitados, podem trazer ganhos inesperados. Interrogar e diversificar os pensares, esse é o grande mistério que alegra e refrigera a alma do médico e do louco que cada um de nós traz em suas entranhas na descontinuidade da vida.  Quando a clínica descobrir que a loucura tem início no humano e que no mesmo se finda, dará, pois, o seu primeiro passo qualitativo; deixará, então, de produzir o nada revestido de insignificância.


REFORMA PSIQUIÁTRICA E SANITÁRIA
Dentro de tudo aquilo que se apresenta como singular, não exclui, de modo algum, caracteres similares ou complementares. Aqui, podemos fazer esse paralelo entre a reforma Psiquiátrica e a Sanitária, as quais, de certo modo, não advêm de uma voluntariedade, mas de um “grito”, que denota uma luta, uma necessidade de se amenizar, por mínimo que seja, o desespero desenhado nas faces germinadoras de um expressivo sofrimento, que traduzia a necessidade de uma atenção mais cuidadosa, um olhar que pudesse enxergar além de questões sociais, culturas e raciais.

Na década de 1950 ainda não existia no Brasil uma estrutura sanitária permanente e descentralizada (Brasil, 1992). Segundo Mendes (1995), a saúde pública era caracterizada pelo modelo do “sanitarismo-campanhista”, que teve na polícia sanitária e nas campanhas de saúde seus principais meios de efetivação, dirigindo-se, prioritariamente, ao combate às doenças de massa – pestilenciais (caracterizadas por epidemias de tifo, varíola, febre amarela etc). Esse modelo foi marcado pelo saneamento dos espaços urbanos e de circulação de mercadorias, pelo estilo repressivo das decisões e pela divisão entre saúde pública (direcionada às ações coletivas) e atenção médica (direcionada aos indivíduos trabalhadores isoladamente) (Merhy & Queiroz, 1993; Mendes, 1995; Merhy, 1997). No entanto, esse modelo torna-se cada vez mais ineficaz na resolução dos problemas de saúde da população brasileira, tendo em vista que propiciava uma baixa cobertura assistencial, direcionada a problemas e estratos populacionais muito específicos. Além disso, por ser uma política centralizadora, não dava conta das diferenças culturais, sociais e econômicas envolvidas no processo de saúde-doença em cada região do país (Brasil, 1992). (Disponível em: http://www.pucminas.br/imagedb/documento).

É em meio a esse cenário que se discute a possibilidade de uma reforma psiquiátrica e sanitária, ambas distintas em si, porém similares em suas bases, dito de forma diferente: complementares: “Conforme a lei 8.080, o SUS propõe a criação de redes de serviços e ações regionalizadas e hierarquizadas, seguindo princípios como universalidade, equidade e integralidade. A reforma psiquiátrica brasileira, por sua vez, vem defendendo a extinção dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por redes de atenção em saúde mental.” 

Segundo Paim (2009), “Com a Constituição da República de 1988, a saúde passou a ser reconhecida como um direito social, ou seja, inerente à condição de cidadão, cabendo ao poder público a obrigação de garanti-lo: A saúde é direito de todos e dever do Estado (Art. 196). Essa conquista política e social pode ser atribuída a diversas lutas e esforços empreendidos pelo movimento de Reforma Sanitária, entre 1976 e 1988” (Paim, 2009, p. 43).
            Ainda, segunda o mesmo autor, “o SUS seria organizado a partir de três orientações fundamentais ou diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade” (ibidem, p. 49).   

No que concerne à Reforma Psiquiátrica, “Amarante (1995) situa a emergência do processo de reforma psiquiátrica brasileira no final da década de 1970, com a constituição do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). Esse período foi marcado por uma série de denúncias contra a chamada “indústria da loucura”, as violências asilares, as péssimas condições de trabalho dentro das instituições psiquiátricas”(Disponível em: http://www.pucminas.br/imagedb/documento)

Em outro momento, o mesmo autor traz considerações de caráter importante para o nosso trabalho, que enfatiza, no âmbito da saúde mental,
A necessidade de constituição de uma rede extra-hospitalar, também chamada rede complementar ao hospital psiquiátrico, composta por serviços intermediários (anteriores à internação), dispostos de maneira hierarquizada e regionalizada, seguindo princípios advindos do movimento de reforma sanitária. Ocorre um incentivo ainda para a multiprofissionalidade, sendo que autores como Dimenstein (1998) situam esse contexto como um dos pontos de entrada da psicologia na saúde pública (ibidem).

É-nos sabido o quanto ambas as Reformas ganharam e continuam a ganhar expressividade positiva no âmbito da Saúde, de um modo geral. Todavia, não escapa de nosso saber que a luta é constante. Aqui, nasce o incentivo e o desejo por fazer valer aquilo que é o direito de todos. É claro que muito ainda se tem a realizar, a olhar e, com certeza, a aprimorar, como por exemplo, os cuidados ao doente mental, partindo do princípio de que manicômio não cura, manicômio tortura. Eis a “logomarca” dos inúmeros movimentos sociais que se levantam em defesa do doente mental. Movimento tal como a “Parada do Orgulho Louco”, ocorrida no dia 21.05.11, em Salvador, é uma representação viva de tal logomarca. O lema Manicômio não cura, Manicômio tortura é expressivo e resume, por si, os objetivos mais sutis do movimento em pauta, o qual expressa em seu lema aquilo que lhe é mais crucial, mais original: a atenção à crise e os serviços de atenção psicossocial.   Relacionando tal ponto com a perspectiva de Amarante, podemos entender que ele encontra sentido digno de nota:
A atenção à crise representa um dos aspectos mais difíceis e estratégicos. No modelo clássico de psiquiatria, entende-se a crise como uma situação de grave disfunção que ocorre exclusivamente em decorrência da doença. Como conseqüência desta concepção, a resposta pode ser agarra a pessoa em crise a qualquer custo; amarrá-la; injetar-lhe fortes medicamentos intravenosos de ação no sistema nervoso central a fim de dopá-la, aplicar-lhe eletroconvulsoterapia (ECT) ou eletrochoque, como é mais conhecido pelo domínio popular (2007, p. 81).

Conforme o mencionado acima, é nesse emaranhado oceano que o lema da Parada do Orgulho Louco encontra terreno fértil, ou seja, encontra brecha para dizer que tem algo nessa relação desajustado. Desajuste este também apontado no debate sobre a Luta Manicomial (18.05.11), no qual, sobre tudo, podemos vivenciar a realização do sonho de Foucault: ver o louco dialogar com a sociedade de igual para igual, fora dos muros, fora dos hospitais. E isso foi possível constatar, quer por meio da música, quer por meio da arte, do contato em geral... Lá esteve o louco dialogando com os presentes, com personalidades como o próprio Jacobina, que em seu discurso introduziu toda a riqueza que estávamos para vivenciar: primeiro na Parada do Orgulho Louco e depois no debate sobre atuação da Psicologia em espaços da saúde (04.06.11), sendo este último de singular importância para que pudéssemos entender que, “no contexto da saúde mental e atenção psicossocial, a crise é entendida como uma resultado de uma série de fatores que envolvem terceiros, sejam estes familiares, vizinhos, amigos ou mesmo desconhecidos” (Amarante, 2007, p. 81).

   Ainda, sobre o debate do dia quatro, fica em evidência que a entrada da Psicologia na Saúde dá continuidade ao pensamento faucaultiana, que atribui não somente à clínica o tratamento do insano, mas principalmente ao contato desse com o meio social, onde todos podem ser responsáveis por tal tratamento. E isso, de todo modo, nos remete a questões sérias. Antes de tudo, o que está em pauta aqui é a questão do preconceito. De fato, responsabilizar-se por tal processo, não significa unicamente observar determinadas exigências, quando, na verdade, o essencial mesmo é a modificação de nossos olhares, a maneira pela qual enxergamos o louco e concebemos a loucura. Talvez, não somente Michael Foucault, mas também os próprios eventos aqui discutidos estejam sinalizando que o preconceito em si constitui o principal empecilho à vida do desatinado, como também ao seu tratamento. Segundo a consideração de Amarante,

Por é necessário que existam serviços de atenção psicossocial que possibilitem o acolhimento das pessoas em crise, e que todas as pessoas envolvidas possam ser ouvidas, expressando suas dificuldades, temores e expectativas. É importante que sejam estabelecidos vínculos afetivos e profissionais com estas pessoas, que elas se sintam realmente ouvidas e cuidadas, que sintam que os profissionais que as estão escutando estão efetivamente voltados para seus problemas, dispostos e compromissados a ajudá-las. Em atenção Psicossocial se usa a expressão ‘responsabilizar-se’ pelas pessoas que estão sendo cuidadas. A psiquiatria se refere à relação médico-paciente, mas na verdade o que ela estabelece é uma relação médico-doença. Na saúde mental e atenção psicossocial, o que se pretende é uma rede de relação entre sujeitos, sujeitos que escutam e cuidam – médicos, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, dentre muito outros atores que são evidenciados neste processo social complexo – com sujeitos que vivenciam as problemáticas – os usuários e familiares e outros atores sociais (ibidem, p. 83).    

Posto isso, é claro que é inevitável não nos depararmos com afirmações que nos fazem pensar a nossa timidez frente à questão. Isso nos faz entender que no Brasil deveria ser assim, isso é, conforme a concepção do Amarante, acima apontada. Além disso, no que diz respeito ao serviço de atenção psicossocial, o autor aponta para a necessidade de se fazer valer o que está na lei:

No Brasil, as portarias ministeriais 189/91 e 224/92 instituíram várias modalidades, dentre as quais os hospitais-dia, as oficinas terapêuticas e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que foram reestruturados pelas portarias n.336/2 e 189/2 estabelecendo várias modalidade de CAPS. Os CAPS funcionam, pelo menos, durante os cinco dias úteis da semana (de segunda a sexta-feira). O horário e funcionamento nos fins de semana dependem do tipo de centro: CAPS I – municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes – funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. CAPS II – municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes – funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas. CAPS III – municípios com população acima de 200.000 habitantes – funcionam 24 horas, diariamente, também nos feriados e fins de semana. CAPSi – atendimento de crianças e adolescentes – municípios com a população superior a 200.000 habitantes –funcionam das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas. CAPSad – atendimento de dependência química (álcool e drogas) municípios com população superior a 100.000 habitantes – funcionam  das 8h às 18h, de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período, funcionando até 21 horas (ibidem, pp. 83/4).

Sabemos que muitos são os desafios encontrados no vigor de tal proposta. A precariedade na estrutura física é só mais uma dentre muitas outras faltas, que podem ser traduzidas na carência de profissionais, material para atividade terapêutica, medicamento, leitos dignos para os usuários, um ambiente climatizado, digno se estar e receber também aos familiares do usuário. Tudo é real, e faz parte desse cenário que passa pelo crivo do tratamento da crise. Em Salvador, a realidade não é de modo algum diferente, as dificuldades são muitas, e isso reflete na maneira pela qual a Saúde é priorizada, um descaso que se autodenucia constantemente, na prática do dia-a-dia.    

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caminho trilhado até aqui nos conduz ás produções e efeitos advindos de uma cultura, do meio social. Nesse aspecto, a capacidade de se produzir doente é expressiva. Se nem sempre a loucura esteve associada à doença, há de se deduzir que temos algo nessa esfera responsável por essa junção. Negar ao insano o convívio social é, de todo modo, negar-lhe o direito de reabilitação. Essa postura só confirma que ser sano ou insano, diz respeito a uma questão social, como já previa o próprio Foucault. Parece que a rotulação constitui o cerne da questão: a loucura, antes de ser uma doença, é uma identidade, o sujeito a porta e sua identificação depende disso.  Os movimentos que se opõem a tal proceder são muitos, isso é o bastante para que possamos entender que há algo ai para ser repensado e reconstruído. A pesar dos lentos passos, as conquistas são expressivas, e algumas Reformas no âmbito da saúde vislumbram horizontes. Reformas tais como as taradas em nosso trabalho, são de caráter importante, de benefício incalculável à sociedade. Mas o mais importante nesse momento é que movimentos e debates continuem solidificando o necessário aos cuidados do louco, o melhor a pensar e a ser pensado. Somente iniciativas como estas poderão apontar novos horizontes e vivenciar o louco desassociado de uma doença, dialogando com a sociedade. A exemplo do debate sobre Luta Antimanicomial (18.05.11).   


REFERÊNCIAS


___ FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998

___L´Ordre du discours, Lençon inaugurale ao Collège de France prononcèe le 2 décembre 1970.

___ O nascimento da Clínica. Rio de Janeiro. Ed. Forense  Universitária, 1998.

___ AMARANTE, Paulo. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 2007.

___PAIM, Jairnilson. Rio de Janeiro. Ed. Fiocruz, 2009.

__FOUCAULT, Michel. O poder Psiquiátrico. São Paulo, Ed. Martins Fonte, 2006

__REV. Filosofia, Ciência & Vida, n. 45


___ PLATÃO. Diálogos. Rio de Janeiro. Ediouro, 1986

DOENÇAS PSICOSSOMÁTICAS: O TEATRO DO CORPO

 Por Djalma Andrade 

Se não quer adoecer, fale de suas emoções. Para os menos desavisados, essa frase do Dr. Dráuzio Varella parece vaga. O bom do vago é que ele sempre cabe alguma coisa, é o caso das doenças. As doenças que, do nada, invadem o nosso corpo e, mesmo com as mais variadas facetas de sintomas possíveis, são vagas de explicações laboratoriais e, portanto, de todo e qualquer tubo de ensaio. O vago aqui cabe algo, a psicossomatose. Estou falando da influência direta das cargas afetivas nas doenças e adoecer.

A priori, para falarmos da atuação do psicológico como causa de doenças orgânicas, é fundamental que lancemos toda a nossa ironia sobro o mito que tende a separar o psiquismo do orgânico. “Situar as coisas em termos de causas psíquicas versus causas orgânicas é uma característica do pensamento médico, verdadeira armadilha epistemológica para o psicólogo, que não pode incorrer em tal erro, pois o psiquismo também é orgânico e vice-versa” (MORETTO, 1983). 

Para o médico psiquiatra, psicanalista e psicólogo Alfredo Simonetti, a ideia de um aspecto psicológico atuar como causa de uma doença orgânica é o próprio campo da psicossomática, que tem demonstrado cabalmente a influência da mente sobre o corpo, o que implica as emoções, os conflitos psíquicos e o estresse como responsáveis diretos pela etiopatogenia das doenças. 

Nas afecções psicossomáticas, o dano físico é bem real, e sua discrição, durante uma análise, não revela à primeira vista qualquer conflito neurótico ou psicótico. O “sentido” é de ordem pré-simbólica e provoca um curto-circuito na representação da palavra. Vamos tentar aqui fazer uma comparação com a maneira pela qual os psicóticos tratam a linguagem. O pensamento do psicótico pode ser concebido como uma “inflação delirante” do emprego da palavra com a finalidade de preencher os espaços de vazio aterrorizante (MONTGRAIN, 1987), enquanto os processos de pensamento dos somatizantes procuram esvaziar a palavra de sua significação afetiva. Assim, nos estados psicossomáticos, é o corpo que se comporta de maneira “delirante”; ele “hiperfunciona” ou inibe funções somáticas normais e o faz de modo insensato no plano fisiológico. O corpo enlouquece.  
Estamos falando das doenças em seu âmbito natural e fisiológico, e aquelas acidentais, oriundas de acidentes, automobilísticos, por exemplo? Seriam elas também de natureza psicossomáticas? Pesquisas mostram que grande parte dos acidentes acontece com pessoas que estão passando por fortes processos de ansiedade ou conflitos psíquicos de alguma natureza. Destruir um carro é, antes de tudo, destruir o próprio corpo, visto ser o primeiro extensão do segundo.  Em atendimento a um (a) paciente, cujo caso é extremamente psicossomático, observei que seu discurso girava em torno da destruição de sua casa, e isso se punha para o (a) a paciente como dor insuportável... não foi tarefa difícil perceber que, inconscientemente,  tal paciente se referia a outro tipo de casa, a “casa corpo”, corpo que agora delirava nas oscilações de fortes e insuportáveis dores.

Mas, enfim, por que e quando somatizamos? Somatizamos porque o ser humano é, por natureza, um ser frágil e desprotegido, cuja sobrevivência sempre dependeu do desenvolvimento de mecanismo de defesa, seja ele psicológico ou não. Desde o mais remoto humano, aprendemos a desenvolver mecanismos de defesa em prol da sobrevivência. No âmbito empírico, coloca-se aí o fogo, armamentos, estratégias de caça...  Na esfera psicológica, não é diferente, e isso ganha corpo no próprio mundo e dinâmica humano ainda bebê. Aí, a mãe representa, para o bebê, o principal mecanismo de defesa. As pesquisas atuais (BRAZELTON, 1982; STERN, 1985; DEBRAY 1988) põem em evidência a importância das primeiras trocas mãe-lactente, bem como o fato de que cada bebê constantemente envia à sua mãe sinais que indicam suas preferências e suas aversões. Se a mãe estiver livre de entraves internos, saberá “ouvir” as comunicações iniciais de seu lactente. Mas pode ocorrer que uma mãe, presa de sofrimento e angústia internos, não seja capaz de observar e interpretar os sorrisos, os gestos e as queixas de seu filhinho e que, ao contrário, o violente ao impor seus próprios desejos e necessidades, o que cria no bebê um sentimento permanente de frustração e de fúria impotente. Esse tipo de experiência pode impeli-lo a construir com os recursos de que dispõe maneiras (mecanismos) radicais de se proteger de crises afetivas e do esgotamento que disso pode resultar.

Segundo o psicanalista Joice Mcdougall, muito frequentemente essas pessoas adquirem um autonomia precoce que os faz parecer os “lactentes sábios”. Como não conseguem confiar em ninguém, obrigam-se a cuidar de sua própria segurança física e psíquica, como se ninguém fosse verdadeiramente confiável. Dito de outra maneira, muito cedo eles compreenderam que deveriam ser pais para si próprios. E um grande e comum mecanismo de defesa aqui é a insônia, como sintoma psicossomático. As pessoas que sofrem de insônia têm que velar constantemente por seu self-lactente, para se assegurarem de que estão fora de perigo. É o modo de que dispõem para atenuar uma angústia de separação que poderia abater-se sobre elas subitamente.

Somatizamos porque precisamos de mecanismos de defesa à sobrevivência, quer seja fisicamente, que seja psicologicamente; e psicossomatizamos quando toda e qualquer carga afetiva transborda, ultrapassa toda e qualquer possibilidade de defesa. Daí, é imperioso concluir que toda e qualquer doença é uma tentativa de cura de si... é psicossomática.   

REFERÊNCIA
_____MCDOUGALL, Joyce. Teatro do Corpo: o psicossoma em psicanálise. 3ªed. São Paulo: ed. Martins Fontes, 2013.
_____SIMONETTI, Alfredo. Manual de psicologia Hospitalar: o mapa da doença. 7ªed., São Paulo: casa do psicólogo, 2013.

_____ANGERAMI, Valdemar Augusto (ORG.) Psicossomática e suas interfaces: o processo silencioso do adoecimento. São Paulo: ed. Cengage Learning, 2012. 

O SOFRIMENTO PSÍQUICO DIANTE DO DIAGNÓSTICO DE CÂNCER

                                                                                                                                 Por Djalma Andrade

Atualmente, em parte de meu trabalho, tem sido a minha rotina avaliar e acompanhar paciente com diagnóstico de câncer. É claro que as perguntas são muitas, e as incertezas superam as certezas.  Dentre as minhas inquietações, uma pergunta sempre em latência: psicologicamente, por que determinado paciente reage diferente de outros diante do diagnóstico de neoplasia, por que o sofrimento psíquico é mais visível em uns ao passo que em outros nem sofrimento parece haver?  Ao longo do tempo e das avaliações busqueis elementos para tentar responder a tal pergunta.

Aos poucos fui entendendo que a resposta está em uma via de mão dupla: fora e dentro do paciente. Quando digo fora, refiro-me aos estigmas que norteiam o diagnóstico “câncer”, que passa pelo crivo da cultura; dentro, estou sinalizando a personalidade do indivíduo. Depois desse achado, eis que surgiu mais uma pergunta: a personalidade pode interferir, a ponto de anular a dor psíquica de um paciente com câncer?

Depois de mais um tempo de estudo e observações, conclui que não. Entendi que a personalidade do paciente tem papel importante, mas não para anular o sofrimento psicológico, e sim para definir o modo pelo qual o indivíduo vai lidar com tal realidade de dor. E você pode perguntar: não seria demais generalizar? Bem, vamos lá... Se eu estivesse falando de uma questão tão somente a partir de fatores “internos” ao paciente, diria que sim. Acontece que estou olhando também para os fatores externos ao paciente com câncer, fatores estes que todos estão expostos, vulneráveis: o principal causador de alterações emocionais e, portanto, comportamentais, não diz respeito tão somente ao diagnóstico em si, mas principalmente aos estigmas que apontam e pesam para uma mesma e única direção: sentença de morte.

Diante de tal sentença, é comprovado, até mesmo pela nossa própria evolução genética, que todo e qualquer organismo, inconscientemente ou não, reage. No bojo de tal reação, torna-se inevitável, no âmbito psicológico, a vivência de sentimentos de medo, ansiedade, impotência, insegurança, tristeza, angústia, às vezes raiva, culpa, solidão, vazio, negação, estresse aumentado e/ou algo da natureza.  

Tais sentimentos se reverberam na vida psíquica do paciente com câncer de forma direta ou indireta.

 Quando diretamente, os sintomas são visíveis, e o "desespero" do paciente é patente; indiretamente, o paciente reage por meio de mecanismo de defesa, que vai depender da personalidade e meio cultural do indivíduo. São muitos comuns mecanismos de defesas tais como: intensificação da crença religiosa, positivismo, esperança aumentada, supervalorização da vida, alto astral elevado, motivação para dar e vender... Inicialmente, é assim que essas pessoas chegam para mim, e realmente contagiam o ambiente; mas na hora da pergunta mágica que costumo iniciar as sessões: “o que você traz”?, os mecanismos desabam, e a dor está lá, ancorada nos estigmas, em águas sentenciosas, a morte. O que não passa de um estigma socialmente construído, pois é comprovado, cientificamente, que mais de 60% dos casos de câncer, quando diagnosticado precocemente, é tratado e curado.  

A PSICOLOGIA DO CU E O JARDIM DO ÉDEN



                                                                                                                                  Por Djalma Andrade


Se você achou estranho o título desse texto que a partir de então começa a ganhar corpo, é porque significa dizer que realmente somos estranhos, e isso é tudo o que não gostaríamos de ser, estranhos. Ser expulso do conforto científico das palavras é uma deselegância violenta: o vulgar nos dedura sem cerimônia.

 Sou tentado a sair desse corpo vulgar, ele é falível por ser assim. Preciso construir um paraíso onde eu e você, caro leitor, juntos, ultrapassemos as reais possibilidades desse corpo esburacado. Esburacado pela sua própria natureza violenta de ser.

O termo paraíso é airoso e, em sua própria elegância de existir, sugere fantasia... eis a palavra chave! Ficou confortável? Diria que tão confortável quanto o famoso mito do “Jardim do Éden”, em um bom e elegante inglês: “Eden's Garden”. Eu gosto de trabalhar com o Jardim do Éden porque ele não é uma utopia, ele existe e compõe a realidade psíquica do bebê. Sob os cuidados da mãe, quem não diria que o bebê está em um paraíso? Já estivemos lá!

Paraíso este que se sustenta justamente em sua natureza de inexistência de trabalho; onde as necessidades são satisfeitas de forma mágica. O mundo do bebê é um mundo mágico. Mágico não no sentido literal, mas mágico no sentido de realidade mesmo: é o bebê que chora e peito cheio de leite vem, saciando seus desconfortos e desejos a partir de um simples “abracadabra”. Não nos esqueçamos de que, quando o Homem é expulso do Jardim do Éden, a primeira ressalva que lhe é feita é de que, a partir de então, ele se sustentará de seu próprio trabalho; ou seja, a têta cheia de leite não estará mais a sua disposição quando ele chorar. E nos momentos de dores, somos atropelados pelo jargão das palavras: “eu quero a minha mãe!” Mas o que se busca mesmo é o Jardim do Éden, perdido para sempre, a têta!

Ser expulso do Éden implica em tomar consciência do próprio corpo, corpo falível que contradiz o mágico e, portanto, a onipotência real do mundo do bebê. Na lógica do Éden, pode-se comer todos os frutos, desde quando estejam dentro dos muros da fantasia,  eis a questão pela qual tais frutos aparecem na literatura bíblica sem nome, são apenas frutos. O que não se nomeia fica no plano do imaginário, imaterial; ao contrário do fruto proibido, que aparece com nome: a “maçã”, o material que, ao ser “comido”,   abre os olhos do Homem diante de sua própria condição física, é quando se da conta da nudez. Há um corpo, e comer significa cagar!

Fiz esse percurso justamente para entrar no problema da ANALIDADE, que reflete o dualismo da condição humana: o seu eu e o seu corpo. A analidade e seus problemas surgem na infância. O mais estranho e humilhante de tudo é a descoberta de que o seu corpo tem, localizado na extremidade traseira inferior e fora do alcance dos olhos, um buraco do qual saem cheiros fétidos e, ainda mais uma substância fétida – muitíssimo desagradável para todos os demais e até mesmo para a criança.
Por mais que a criança tente realizar os maiores voos da sua fantasia, ela deverá sempre voltar ao corpo. A princípio, a criança se diverte com o seu ânus e suas fezes, e alegremente enfia o dedo no orifício, cheirando-o, lambuzando as paredes com fezes, brincando de tocar objetos com o ânus, e coisa assim. Esta é uma forma universal de brincar que realiza o trabalho sério de todo o brincar: reflete a descoberta e o exercício de funções naturais do corpo.

Com a brincadeira anal, a criança já se vai tornando um filósofo da condição humana. Como todos os filósofos, porém, ainda está presa a essa condição, e sua principal tarefa na vida passa a ser negar aquilo que o ânus representa: o fato de que, na verdade, ela, a criança, nada mais é do que um corpo, no que diz respeito à natureza.

Os valores da natureza são valores físicos (maçã) os valores humanos são valores mentais (frutos), e embora estes alcem os voos mais elevados, são construídos sobre excremento, impossível sem ele, sempre trazido de volta para ele. É como disse Montaigner, “no mais alto trono do mundo o homem senta-se sobre o traseiro”.


O ânus e seu incompreensível e repulsivo produto representam não apenas determinismo e sujeição física, mas também o destino de tudo o que é físico: deterioração e morte. E por mais que você se ache lindo e maravilhoso, não se esqueça de combinar toda essa sua beleza divinal e narcísica com um cu que caga. É demais! A natureza zomba de nós a todo instante!